Um dia especial

Antes de conhecer os encantos do universo feminino, o que eu mais gostava era de futebol. Jogava em escolinhas, treinava duas vezes por semana e me divertia muito com aquilo. Porém, o mais marcante era o dia do jogo. É bem como diz o ditado dos boleiros, "treino é treino, e jogo é jogo". Bate uma adrenalina diferente ao vestir aquela camisa com um número às costas, o fardamento completinho, a imensidão do campo totalmente à disposição para correr rumo à liberdade.
Confesso que ficava muito nervoso em dias de jogos, e minhas atuações eram pífias. Destruía nos treinamentos, gastava a bola, era elogiado pelo professor, todavia, bastava oficializar a brincadeira, para que eu virasse uma manteiga derretida e desaprendesse tudo em questão de segundos. Uma verdadeira decepção que, certamente, foi ponto determinante na minha desistência da carreira futebolística.
Meu irmão freqüenta a escolinha de futebol há mais ou menos um mês. Treina às terças e quintas e, quando chego em casa, ele me conta faceiro dos gols que marcou, de como foi o treino etc. Era um sonho que ele tinha há alguns anos, mas que a mãe ainda não permitia por considerá-lo novo demais, e outras preocupações que a saúde dele requer.
Ontem, meus amigos, foi o primeiro jogo oficial dele. E, num gesto que jamais vou esquecer para o resto de minha vida, desmarquei tudo, esqueci todo o resto do mundo, somente para acompanhar essa partida. Aqueles olhinhos nervosos me olhavam, ansiosos pelo momento de vestir a farda, entrar em campo e jogar.
Me chamou cedo, estava agitado, cheio de dúvidas, questionamentos óbvios, a aflição natural de um estreante. Quando chegamos no campo, o jogo da categoria dele, que seria o primeiro, foi adiado para ser o segundo. Achei que o guri fosse ganhar uma síncope ao meu lado. Após muita espera, finalmente foram para o vestiário.
E aí, a primeira decepção: "vou ser reserva". Aquelas palavras perfuraram meu peito com sordidez quando escutei aquela voz inocente. Ele veio correndo, todo desajeitado, cada meia com um tom de vermelho diferente. "Foi o que sobrou para mim", disse ingenuamente, ainda conservando a alegria de quem estava prestes a participar de um jogo de futebol pela primeira vez.
Pensei rápido, e respondi que tudo bem, que ele entraria no segundo tempo e eu estaria ali para vê-lo em ação. Ele sorriu, pois não sabia que um reserva jogava, pensou que fosse ficar apenas olhando. Um sorriso esperançoso, como se vê poucos por aí. Pedi para ver o número da camiseta, e sofri um choque quando ele se virou: não havia número nenhum ali. Todos no time tinham, menos ele. Meu sangue ferveu, tive vontade de sair correndo para perguntar ao treinador o porquê de um gesto tão indiferente justo com o meu irmão, meu maninho, meu caçula, por quê? No entanto, ao ver que ele nem deu bola para esse detalhe, minha dor amenizou, desejei boa sorte e mandei-o para o campo.
O time dele saiu perdendo de três a zero. Em poucos minutos, uma goleada parecia ser desenhada e previ um vexame. Minhas atenções dividiam-se entre a partida e o banco de reservas, onde meu irmão aguardava sua oportunidade. E foi ainda no primeiro tempo que vi o treinador, com a mão em seu ombro, fazer sinal para o juiz. Este é o segundo momento que não mais esquecerei em minha vida: entrou correndo com toda a velocidade que suas pernas permitiam, finalmente pisando o gramado numa partida de verdade. A sensação de presenciar um momento de felicidade verdadeira na vida de uma criança é indescritível. Senti-me orgulhoso por conseguir enxergar a pureza daquela alegria tão simples.
Em poucos segundos, a bola chegou aos seus pés pela primeira vez. Um encontro mágico. Dominou-a, com tranqüilidade, ergueu a cabeça procurando o companheiro mais próximo e passou-a adiante. Um instante apenas, mas que durou a eternidade necessária para que eu me levantasse da cadeira para não mais voltar a sentar.
No meio do caminho de Drummond tinha uma pedra; no do meu irmão, um par de meias. Velhas, esgaçadas, não paravam nas canelinhas finas dele que, afoito, não parava de ajeitá-las um minuto, para meu desespero do lado de fora do gramado. "Pára de ajeitar as meias e joga, pelo amor de Deus", eu berrava do lado de fora, sem sucesso. Olhei para os céus e invoquei os deuses do futebol. O Brasil perdeu uma Copa por causa de um gesto desses, sacramento! Porém, todo o meu esforço foi em vão. Para a minha sorte, o primeiro tempo terminou em seguida, ao que eu disparei, como um guepardo, em direção ao banco de reservas.
Falei nas meias, disse para esquecê-las. Suado, ofegante, rosto vermelho, ele resmungou qualquer coisa e nem me deu atenção. Recuei. Sabia que era necessário ter cautela naquele momento. Esperei o professor falar e percebi que ele foi se acalmando. Quando todos levantaram-se para voltar ao gramado, peguei-o carinhosamente pelos ombros, olhei dentro do grão de seus olhos e pedi, implorei, dei a pata, rolei e fingi de morto, tudo para que ele esquecesse as malditas meias. Ele alegou que estavam soltas, incomodando, por isso as arrumava. Eu, porém, fui enfático, e disse-lhe que estava jogando muita bola, mas que era preciso esquecer as meias, ou o treinador o tiraria do time por improdutividade. Não sei se pelo elogio, ou pelo tom cabal ao mencionar o técnico, ele prometeu que não mais repetiria esse gesto. E, de fato, o fez apenas duas vezes, no máximo.
Foi um segundo tempo eletrizante. No primeiro lance em que o artilheiro do time adversário, que até o Créu já tinha dançado ao comemorar um de seus gols, confrontou-se com meu irmão, mal sabia que estava diante da bravura de um Reis Dutra. Com um movimento tenaz e aguerrido, o pequeno jogador sem número às costas desarmou-lhe de maneira impávida e saiu jogando com uma elegância que me lembrou Mauro Galvão.
Seria um aviso dos céus? Não sei, mas o fato é que, enquanto eu torcia freneticamente do lado de fora, o time cresceu em campo, empatou e reverteu o placar para 4 a 3, provocando êxtase generalizado dentro e fora do gramado. Num escanteio, inclusive, ele olhou para mim, ao que o chamei para o meio da área. Ergueu o braço, saiu da marcação e ela veio, rasante, direcionada, ao que ele esticou o pé e, macacos me mordam, a bola quase entrou! Juntei meu coração do chão, limpei a sujeira, engoli-o novamente e continuei a assistir à partida.
Quando o juiz apitou o fim da partida, presenciei a terceira e, sem dúvida, a mais marcante de todas as cenas que já havia visto naquela manhã. A comemoração dele, junto com os colegas de time, como se tivessem ganho um campeonato, numa euforia que eu jamais tinha visto meu irmão alguma vez, bracinhos abertos, fazendo aviãozinho pelo gramado, algo que me arrepiou até a alma, de tão emocionante.
Saiu de campo e passou reto por mim, ainda embuído pela efusão da vitória. Foi ao vestiário e, quando se deu conta que era eu quem estava em poder da mochila, voltou. O sorriso de vencedor no rosto, de quem superou uma importante etapa na vida. Dei-lhe os parabéns, entreguei a mochila e ele foi, correndo, como sempre.
Voltamos para casa conversando sobre o jogo, os lances mais bonitos, os gols e, claro, destacando a brilhante participação dele em campo. Concedi a ele todos os elogios que sempre quis receber desde pequeno, mas nunca ouvi. E, só então, percebi que, mais do que ele, eu mesmo superei uma importante fase da minha vida, a de ir para o jogo acompanhado, num domingo de manhã, com alguém ao meu lado apenas pelo puro e simples prazer de me ver jogar. Mesmo com o papel invertido, já que agora fico do lado de fora do campo, me realizei.
Aquele passarinho, voando livre, correndo atrás da bola e fazendo do jogo uma diversão sadia, me fez recordar o quanto era bom ser criança. Senti novamente a alegria infante em meu coração, a cada ajeitada de meia, arrumada de camisa para dentro do calção, cada gesto. Tudo o que não tive segurança para fazer e jogar bem o futebol, ele teve, pois, sempre que a aflição batia, olhava para fora do campo e me enxergava, batendo palmas, incentivando, torcendo. Cumpri minha missão, e permiti que meu irmão experimentasse o sabor de felicidade que só fui conhecer ontem.
E é por isso que, mesmo com uma meia de cada cor, a camisa sem número e sem fazer nenhum gol, ele foi o craque do jogo. O meu craque. Talvez ele nunca saiba que este jogo marcou muito mais a mim, do que a ele próprio. Tenho orgulho de, quando ele for contar aos amigos sobre seu primeiro jogo de futebol, poder dizer: "meu irmão estava lá". Sim, eu estava. Correndo junto com ele, o vento no rosto, e sensações que me acompanharão para o resto de meus dias.

18 comentários:

  1. Eu já li muitos textos teus e já me emocionei em alguns em especial, mas esse foi diferente... As lágrimas estão aqui escorrendo pelo meu rosto sem que eu consiga controlá-las, mas elas caem não só pelo fato de teu texto ser de uma pureza de sentimentos inexplicável. Elas caem porque tu consegue ser incrível, mesmo com todas as dificuldades que tu passou quando criança, mesmo com as tuas frustações tu consegue ser um homem admirável e um irmão maravilhoso.
    Me orgulho muito de ter um Amigo assim. ;)

    Beijão!

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  2. Que irmão orgulhoso!
    Eu não acompanhei jogos de futebol da minha irmã (porque ela também nem jogava), mas já vivi essa torcida pelas conquistas dela.
    Bjitos!

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  3. Credo guri! Pra que escrever uma coisa enorme assim que eu não consigo parar de ler e que me encheu os olhos d'água? Que coisa mais linda!
    Esse teu post me fez pensar numa coisa: O Gui, meu filho, faz tempinho que me pede pra entrar na escolinha de futebol e eu não tava dando muita importância, sempre dava uma desculpa ou outra. Ele adora futebol, acho que vou pôr ele.
    Obrigada Antóónio. Que empurrão vc me deu! Vai ser emocionante ver ele num campeonato depois...
    Boa semana!!! Ah, melhorei da gripe, e vc da amigdalite?
    Beijão

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  4. Que linda narração!
    A relação entre irmãos é uma das mais fortes (acredito eu).
    No seu caso com um irmão bem mais novo, imagino como deve ser especial.
    O que poderia ser uma partida de futebol simples, lendo seu texto transmitiu toda a importancia, emoção e sentimentos do dia.
    Beijos.

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  5. Bah cara, me emocionei aqui com este teu relato. Consegui enxergar tu torcendo e ele jogando como se fosse final de gauchão com grenal.

    Muito bom, gostei bastante.

    Abraço, mano velho!

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  6. Imaginei o artilheiro do outro time dançando até o Créu.
    Não tenho irmãos, mas a sensação de ver um irmão assim feliz e saber que vc teve a oportunidade de participar disso deve ser maravilhosa. Bem que eu queria agora um dia marcante assim (pelo lado bom, claro). É disso que eu preciso!
    Beijo!

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  7. As lágrimas tentaram não cair, mas foi inevitável...
    Lindo demais esse relato. Cada detalhe, cada lance... Cada emoção sentida e tão bem descrita pra gente.
    Talvez o teu irmão nunca saiba a importancia que aquele jogo teve pra tu, mas ei... Talvez tu nunca saiba a importancia que a tua presença teve pra ele!

    Beijão pra tu "guri"

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  8. Mas que momento!
    Tu botou tanto sentimento e tanta emoção nas palavras que me senti do lado de fora do campo, vendo teu irmão jogando. Lembro de quando ia ver meu primo, caçula, nos campeonatos de sábado a tarde. Relembrei a cena talvez por você ter descrito ela, parecida.

    Você é o irmão mais caçula que já tive notícia. E teu irmão tem sorte por ter um irmão tão presente na vida dele.

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  9. Mas que momento!
    Tu botou tanto sentimento e tanta emoção nas palavras que me senti do lado de fora do campo, vendo teu irmão jogando. Lembro de quando ia ver meu primo, caçula, nos campeonatos de sábado a tarde. Relembrei a cena talvez por você ter descrito ela, parecida.

    Você é o irmão mais caçula que já tive notícia. E teu irmão tem sorte por ter um irmão tão presente na vida dele.

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  10. enfim, acho muito bonito da tua parte acompanhar teu irmão.
    em geral, acho muito bonito essa união entre irmãos... nunca tive isso na minha casa, então valorizo muito que preserva esse laço.

    espero que você continue o acompanhando, mesmo quando ele virar um adolescente que acha que pode abraçar o mundo com as pernas.

    antes que eu me esqueça, deixa de ser galanteador rapaz!

    bjos *

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  11. ah... em relação ao outro sonho, não dá pra contar em meios expostos.

    hum... que tal um dia, se você sair da tua terra e vier passear em são paulo? posso servir de guia turística e lhe garantir ótimas risadas!


    bjo

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  12. Com esse texto maravilhoso, cheio de emoção me fez sentir que eu estava nessa partida de futebol. Você é um perfeito irmão e em um futuro próximo você verá como a sua participação foi fundamental para a realização do teu irmão, porque "A sensação de presenciar um momento de felicidade verdadeira na vida de uma criança é indescritível. Senti-me orgulhoso por conseguir enxergar a pureza daquela alegria tão simples."
    Parabéns Antonio!
    Ah e quando quiser conhecer o menor estado da federação, porém com uma qualidade de vida maravilhosa, a casa está de portas abertas. Faz como a Mah, coloca a mochila nas costas e vem vê o que minha capital tem.

    Beijão, moço!

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  13. ainnnnnnnnn
    como tem coisas nessa vida que, por mais simples que sejam, marcam pra sempre, né?!

    Essa é a melhor coisa.

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  14. me senti mto mau ao ler este texto, mas calma, fico feliz por vc e seu irmao, achei mta linda essa historia, me deu vontade de chora, mas me senti mau em saber q nunca, NUNCA, mesmo poderei fazer isso pelo irmao visto que ele eh filho do meu pai com outra mulher, e visto q nao falo com meu pai, tambem nao consigo falar com meu irmao
    =///








    bjs

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  15. Antônio..eu tô segurando pra não chorar! Aieee!!!!Muito, muitoooo lindo =D Eu me senti no seu lugar...me imaginei como se tivesse vendo um filho meu jogando seu primeiro jogo oficial...eh muito lindoo e inexplicável a sensação que dá!!! Dá pra perceber como deve ter sido pra você. que vivenciou tudo isso...de verdade!!!
    A importância de você estar lá, apoiando, torcendo, vibrando...ajudando...é algo que insconscientemente marca sim a vida de uma criança! Por isso, eu tenho que lhe dar os parabéns, Antônio...você com certeza absoluta é um grande irmão!!!
    =***

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  16. Bah, que texto!
    Imagino a emoção que vcs sentiram nesse dia!
    Teu irmão é um amor e tem sorte de ter um irmãozão desses!

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  17. Posso falar?!
    Lindo, lindo, lindo!
    vc é uma das pessoas mais lindas que já 'conheci'.
    Me emocionei lendo, juro!
    Parabéns pro craque e pro irmão do craque por ser tão encantador assim!

    *eu nao disse que ia bbr por vc?
    kkkkkkkkkkkkkkkk
    huhuhuhuh
    RS que me aguarde
    =X
    hehehehe

    beeeeijoooooos

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