Olha aí, freguesia!

Ontem, enquanto voltava para casa, fiquei prestando a atenção no meu bairro e comparando as várias mudanças que ocorreram nesses mais de vinte anos que moro lá. Mesmo não sendo nenhum velho, constatei que os anos deixaram para trás fatos que hoje são só lembranças gostosas de recordar.
As ruas eram todas de paralelepípedo e, acreditem, a gente jogava bola nelas mesmo assim. No campo de futebol que há em frente à minha casa, funcionava um time de várzea aqui de Novo Hamburgo, onde todo domingo se acordava com a gritaria da torcida. Hoje está tudo asfaltado, o time acabou e o campo virou um amontoado de mato, onde meia-dúzia de gatos pingados ainda joga uma bolinha, inclusive meu irmão.
Poucas casas tinham grades nos muros. O nosso era baixinho, o portão trancado com um simples cadeado. Olhando em volta, não se vê uma casa sem algum tipo de proteção. Mal vejo os vizinhos em seus pátios, todos escondidos atrás de ferros e tijolos.
Os brinquedos e as brincadeiras aconteciam na rua. Fazíamos arminhas de pau, carrinhos de lomba, cavocávamos na areia, invadíamos os matos atrás do campo correndo, brincando de esconde-esconde, polícia e ladrão. Meu irmão, coitado, conta como raros os momentos em que põe o nariz pra fora do pátio. Até porque ele tem o vídeo game que o entrete por horas, algo que eu fui descobrir às vésperas da adolescência.
Bah, o caminhão do gás. Lembrei do caminhão do gás, que passava nas ruas buzinando num volume putaqueparilmente alto. Não tinha como dormir com aquela poluição sonora, isso quando a mãe não mandava atacar o caminhão pra trocar o bujão. Depois de uns anos, trocaram a barulheira por uma musiquinha viciante ("se tem o lacre azul do cachorrinho, pode confiar, é Liqüigás"), mas o advento da tele-entrega também atingiu o gás de cozinha. Basta ligar e, em quinze minutos, o bujão novo chega.
E os armazéns? Cansei de ir neles comprar cigarros pros meus pais. Para a mãe, um Ritz longo. Para o pai, um Hollywood vermelho. Quando não tinha um deles, voltava em casa pra perguntar qual era a segunda opção. Identificávamos os armazéns pelo nome do dono. Ali no bairro tinha o Arlindo, o Albino, a Sara e o Machado. De figurinhas a milho quebrado pras galinhas, de girar o baleiro que emitia um som agudo a comprar o leite, todos os caminhos levavam aos armazéns. Até que surgiu a expressão "mini-mercado". Qualquer buteco de quinta virou mini-mercado. "Açougue, Padaria e Mini-Mercado Fulano de tal", é assim que pintam as fachadas. Acabou a magia de girar o baleiro.
Vários velhinhos da vizinhança morreram. E, ao contrário do Seu Madruga, eles não continuam aparecendo para nós, o que de certa forma descaracterizou o bairro, pois os baluartes se foram. Oitenta por cento das pirralhinhas que foram alunas da minha mãe são hoje as próprias mamães. Com a idade do meu irmão, droga era apenas uma expressão que se usava quando algo não estava bom. Hoje, ele joga bola no campo sentindo o cheiro da maconha que fumam nas redondezas.
Sim, tudo mudou. Após vinte anos, o bairro é outro, totalmente inserido no século XXI. Porém, meus caros, há os resistentes. Aliás, foi isso que me levou a escrever esse texto, falar justamente de algo que, mesmo depois de duas décadas, continua do mesmo jeito: o caminhão do verdureiro.
Desde mil novecentos e Hebe Camargo que é a mesma coisa. Muitas frutas e verduras, uma balancinha suspensa com aqueles pesinhos que parecem um pino de boliche, o tio no microfone, a tia na caçamba alcançando a mercadoria e, o principal, a mesma frase:

- Olhaífreguesiétrintalaranjéumreau, trintaovéumreau, trintabergamotéumreau, olhaífreguesia!

Traduzido para o português, fica assim:

- Olha aí, freguesia, trinta laranja é um real, trinta ovo é um real, trinta bergamota é um real, olha aí, freguesia!

Sim, tudo trinta. São aficcionados por três dezenas, só pode ser. As palavras emendadas, a frase repetida no final, pouquíssima variação de texto, tudo continua do mesmo jeito. Há, é claro, os mais modernos, conhecedores do poder do marketing:

- OlhaífreguesiétrintalaranjaGRAÚDéumreau, trintaovoGRAÚDéumreau, trintabergamotaGRAÚDéumreau, olhaífreguesia!

Notem a ênfase no "graúdo". Isso, sim, é saber vender, valorizar seu produto. Ah, e tem mais. Há frutas e verduras que não podem ser vendidas em trinta, obviamente. Imagine alguém comprando trinta melancias, trinta abacates, ou qualquer outra coisa pouco consumida para ser comprada nessa quantidade. Mas, isso não é problema:

- OlhaífreguesiaPACOTÃOdeaimpiméumreau, PACOTÃOdecenouraéumreau, PACOTÃOdealfaceéumreau, olhaífreguesia!

O aumentativo é pra não deixar margem para qualquer tipo de dúvida. Criatividade é tudo. Aí está a verdadeira visão de mercado. Você vende tudo sem se prender em quilos e quantidades. Ou é trinta, ou é pacotão. E o que é melhor, tudo graúdo. Pra não se perder nos preços, põe tudo a um real e estamos combinados. Só pode dar certo, ou não resistiriam tanto tempo à inflação, à alta do dólar e aos escândalos do Congresso. A única coisa que eu não entendo é a presença da balança, já que ela nem é usada. Talvez o verdureiro seja libriano, sei lá.
Portanto, meus amigos, um viva para a última flor do lácio dos bons tempos, os resistentes caminhões de verdura. Que permaneçam muitos anos empunhando seu microfone, vendendo trinta, seja do que for, a um real e mantendo acesa a chama das boas lembranças na memória de quem já viveu tudo de um jeito diferente no mesmo lugar.

14 comentários:

  1. Enquanto tu falava das tuas lembranças, começei a pensar nas minhas... No começo desse ano voltei para a casa onde morei dos sete aos 14anos. Caramba! É engraçado notar a diferença... Lembro quando a rua era coberta de bicicleta, tanta a minha como a dos meus vizinhos. Ou quando andávamos de patins todos juntos. Juntava todo mundo pra jogar vídeo game, ou na minha casa, ou na casa dos meus avôs (é que o rapaz que trabalha lá, sempre teve o melhor vídeo game, aí ía todo mundo pra lá).... Era bom demais... Lembro quando ia comprar "dudu" (aquele "picolé" de saquinho), e eu adorava o dudu de quick....
    Engraçado... Tentando lembrar agora.... Notei que não restou nada igual a antes... Só alguns meninos que, de vez em quando, vejo andando de bicicleta...


    Beijão pra tu e obrigada por me fazer lembrar de bons momentos...

    ResponderExcluir
  2. Nossa, voltei a ser criança lendo teu texto,são tantas lembranças dessa época!
    Dentre as coisas que tu citou a que mais me fez rir foi a do caminhão do gás. Eu odiava aquela musiquinha do liquigás, nunca conseguia dormir até tarde por causa daquele barulho. hehehe!
    Mas mesmo com a poluição sonora que existia,era muito bom de se viver. Bons tempos! =]

    Beijão!

    ResponderExcluir
  3. Hoje não vivemos sem o computador, sem isso e sem aquilo. A poluição dos infinitos carros já faz parte do nosso dia-a-dia, tudo em nome dos adventos do mundo globalizado. A sociedade aspira a modernidade.
    Onde ficou a magnitude dos puros tempos de outrora?

    Primo velho, ficou na lembrança de poucos que viveram ou desejam ter vivido.
    Nada é como antes. Estamos nos destruindo aos poucos, esuqcendo dos nosso sonhos.

    Abraço

    ResponderExcluir
  4. Primeiramente, obrigada pelo comentário no meu ultimo post. Achava que ninguém entenderia. Mais uma vez, não contava com tua astúcia! e que bom não sermos 'subs'. :)

    Voltando para cá: Deus! Que texto bom de ler. Uma viagem, confesso. Aos meus 23 anos de idade, percebo que estamos na mesma situação de perplexidade ao ver as mudanças desse mundo moderno! E que gostoso ser nostálgico lembrando do baleiro que passava uns quinze minutos girando até me decidir. E do caminhão do gás, com aquele sininho infernal. E das brincadeiras de rua? As vezes penso que as crianças de hoje não são felizes, pq não tiveram esse prazer que é quase único! Que coisa boa poder lembrar disso tudo e sentir saudade desse tempo tão bacana de nossas vidas! :)

    A propósito, me mande trintareaudeovoGRAUDO pra minha casa. tô precisando. kk

    cheeiro, AA! :)

    ResponderExcluir
  5. Renato Rocha comentando, deve aparecer anônimo por causa daquele problema de vírus!!!
    Como a minha infância foi numa cidade da fronteira, lembro até hoje de uma Senhora que vendia as "rodas de carreta" que nada mais eram umas tortas fritas na banha de porco, tipo massa de pastel aberta, gigante com um furo no meio. A minha Vó Maria fazia também. E as idas na "venda" e fazer um ranchinho, um surtido. Traduzindo: Comprar várias coisas no armazém. Idos tempos, e nada de drogas e video game. Só bola com cabeça de boneca, conga, tênis Bamba. No quesito brinquedos, eu tinha dois carros feitos de madeira, lata de oleo de soja e rodas de borracha das havaianas pretas e brancas(Eram as únicas que existiam): Dixie e Gal. Custer.
    Boa lembrança Antônio!!!!

    ResponderExcluir
  6. Mai ói que eu senti a nostalgia... acho que aqui no bairro ainda tem o verdureiro tbm... mas de kombi, sabe? E ele fala, mas eu já não sei o que... até porque, quando não estou dando aula, estou dormindo... e quando durmo, aff... o mundo cai e eu não escuto! rsrsrs
    Adorei o post de hoje, Antonio, tá muito bem escrito!
    Beijão

    ResponderExcluir
  7. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    Num sei se chegou por aí o carro do traga a vasilha. Ele é beeeem mais recente. É uma kombi que fica passando nas ruas e anunciando

    -Dez bolas de sorvete, é um real. Traga a vasilha!

    Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

    Fizeram até um bloco de4 carnaval com o nome traga a vasilha.

    bjo

    ResponderExcluir
  8. Vivaaaa o tiozinho da verduraaa!!! Vivaaaa!!

    A parte que ele deve ser libriano foi tudo! ;D

    Mas acho que é até bom saber que algumas coisas não mudam com o tempo, não é?! Se o tiozinho da verdura tivésse mudado seu marketing e vendas vc talvez não teria escrito esse nostálgico post que me fez lembrar minha infância na rua brincando de esconde-esconde nos terrenos baldios!

    Velhos tempos que não voltam mais!
    (pareci uma idosa falando! rs)

    beijo Antônio

    ResponderExcluir
  9. Eita coisa boa, essa. Nostalgia tomando conta do Que Momento!
    Rachei o bico com o caminhão de gás. A-do-ra-va quando este passava aqui na frente e ficavámos, feito tolos, eu e meu irmão na porta, acenando para os homens que viajavam na "caçamba" do caminhão... Tipo caminhão de lixo, sabe?

    Bons tempos...

    ResponderExcluir
  10. É inevitável ler o seu post e não lembrar de momentos de nosso passado, ads lembranças que temos, dos lugares que moramos (no meu caso, pois já morei em quatro estados diferentes e em seis casas/apartamentos diferentes.
    Bjitos!

    ResponderExcluir
  11. Foi impossível não bater a nostalgia após lê esse texto, que por sinal maravilhoso. Lembrei de vários lances parecidos com os seus, como por exemplo, o carro do gás, que moro em apartamento tinha que interfonar para a portaria desesperada quando escutava a música do gás, minha mãe gritava: "Lydia, olha o gás, interfoa aqui menina!" Quando eu ía comprar o cigaro dela no "Jorge", eu já ía com duas opções.. =) Ah o baleiro que girava, nem lembrava desse detalhe da nossa infância. E as brincadeiras? Bem semelhantes, esconde-esconde, polícia e ladrão, queimado, entre outras.
    Ainda moro no mesmo local há 21 anos, e hoja está também tudo muito diferente, as crianças não têm a infância feliz que tivemos, os jogos eletrônicos tomaram o espaço e tempo.
    Enfim, nossa infância foi feliz e eu sinto uma saudade disso. =D
    Bjoooo moço!

    ResponderExcluir
  12. Hahaha
    Quantas recordações, todo bairro tem um vendedor famoso.
    Por aqui o vendedor do alho é a mini atração, fora o vendedor de pães que anuncia e sai correndo, parece que não quer vender. hahaha
    Mais uma vez um texto ótimo de ler.
    Ah, e finalmente consegui repassar o selo! =)
    Beijoss!

    ResponderExcluir
  13. Sou de Pernambuco. Cidade natal e atual: Recife. Aliás, nunca morei em outro canto. Num tô há 20 anos na mesma casa, mas nunca morei em outra cidade.

    Bjo

    ResponderExcluir
  14. bem... o tempo muda. os tempos mudam.
    as pessoas mudam.
    a vizinhança muda.
    o bairro, a cidade, o paí e o mundo mudam.
    e a gente parece não mudar junto com eles, porque se assusta quando vê a mudança.

    eu me assusto.

    ResponderExcluir

<< >>