Debaixo dos caracóis dos meus cabelos...

Às vezes, eu me pergunto: por que é só comigo que certas coisas acontecem? Fatos aparentemente triviais têm o dom de se tornarem grandes odisséias e, claro, viram histórias na minha vida. Falo de situações simples, aquelas pelas quais todo mundo passa com naturalidade, que fazem parte do cotidiano de qualquer cidadão comum e temente a Deus.

Cortar o cabelo, por exemplo.

Eis que fui dar um tapa no visual, tosar a juba, ajeitar a melena, aparar o matagal. "O de sempre", pensei, corte que ostento há mais de cinco anos, com raríssimas exceções em que, por um motivo ou outro, tive de mudar de barbeiro e, consequentemente, meu cabelo não ficou igual ao corte que o Estanislau - chamar-lo-ei por este nome fictício, para não acabar com a carreira do cara - sempre faz.
Aquela história de sempre. Cheguei à barbearia, peguei o jornal, esperei minha vez com parcimônia, sem pressa. Vinte minutos, ou dois cortes depois, lá fui, sentar na cadeira onde aparo as madeixas há mais de sete anos, desde os tenros anos de minha adolescência, quando, ainda formando o caráter, decidi eleger um barbeiro para acompanhar-me até a velhice. Poder ter aquele cara que diz "o de sempre, né, Seu Antônio?", como acontece com tanta gente por aí. Eram nove reais bem empregados.

Eu disse "eram". Não são mais.

"O de sempre", continuei pensando. Ora, são sete anos, tem de haver alguma sintonia entre ele e eu. Sou cliente há tanto tempo justamente para não precisar dizer que quero meu cabelo assim, ou assado. Segue o curto e esclarecedor diálogo antes de Estanislau começar o serviço:

- Continuamos com máquina?
- Sim - assenti com a cabeça.
- A dois?
- Sim, sim.

Ok, tudo certo, sem contratempos. Ele sempre começa com a número dois dos lados e, depois, lasca a cinco por cima, esse é meu corte. Dura exatamente um mês, até que eu volte lá e repita o processo. Faço isso com ele há sete anos, doze vezes por ano, o que dá um montante de setenta e dois cortes com máquina dois dos lados e cinco em cima.
Conversa vai, conversa vem, porque barbeiros adoram um dedo de prosa, e o inacreditável aconteceu. Antes que eu pudesse sequer alertá-lo da fatalidade, enxerguei pelo espelho a máquina dois atravessando o meio da minha cabeça. O meio! Não! Ali era o lugar da cinco! Da cinco!
Tarde demais. Como um carneiro tosado, assisti a Estanilau cometer um verdadeiro assassinato em meus fios tão bem cuidados e religiosamente lavados com xampu. Quis gritar, protestar, rasgar a capa onde caem os cabelos, espernear, rodar a baiana e xingá-lo de mil impropérios. Afinal, que palhaçada era aquela? Sete anos sendo cliente para, em dez segundos, virar um filhote de mão-pelada?
Porém, de nada adiantaria reagir. Compassivo, tive de acatar meu triste destino pelos próximos dois meses: côco pelado. Tive de somatizar toda a minha raiva numa singela expressão glútea, aquela cara de xis sem maionese, olhar petrificado, embasbacado. Meu pobre cabelinho...
Até pensei numa possível colagem com Tenaz, mas logo a depressão se abateu sobre mim e tive de me conformar com aquela situação lamentável. Restou-me, então, tossir. Tossidinhas discretas, como quem diz, "ei, cidadão, não acha que há algo errado nisso que você está fazendo?", mas sem dar muita bandeira.
Suando frio, me achando tenebroso e tossindo esporadicamente, a raiva maior se devia ao esquecimento do porcaria do Estanislau. Sete anos jogados na lixeira... Com uma expressão leve, quase assoviando, ele pegou a navalha. Ou seja, nem tossir eu podia mais, vai que numa daquelas o sacripanta me dá um talho no pescoço? Ficaria a legítima ovelha de esquila, só faltaria o mata-bicheira. Se pega a aorta, então, ficaria um defunto deprimente e, o que é pior, de cabeça raspada.
Saí da barbearia fulo (troque éfe por pê e éle por tê) da cara, chutando tudo quanto era pedra que via pela frente, até que calculei mal e dei uma topada num pedregulho enorme, o que me deixou tinindo de dor, indignação e uma ira sanguinária, capaz de matar um búfalo a dentadas ( o que, ainda por cima, quebraria todo o meu aparelho, completando o circo dos horrores).
O fato é que Estanislau perdeu um antigo cliente. Perdeu, perdeu, sem dúvida que perdeu. Nunca mais ponho meus pés lá, e principalmente meu cabelo. Não me conformo com esse visual de bola de futebol americano, algo refutável, medonho, um verdadeiro escárnio.
Quando era pequeno e raspava o melão, lembro que minha avó dizia que não gostava desse tipo de corte, justamente por parecer uma ovelha tosada. Ela falava que eu ficava com os olhos grandes. Ou seja, pra minha própria avó me esculachar dessa forma, é porque eu realmente fico um filhote de cruz-credo com beuzebu. Pois, muito bem, a ovelha tosada está de volta. Estanislau, nunca mais! Nunca mais!

2 comentários:

  1. Ah essa foi boa...cara, tu sabe que é assim mesmo. O João, meu filho, tem 04 anos, e eu levo ele no mesmo cabeleireiro, desde o primeiro corte(esse ficou registrado com fotos, afinal era o primeiro), e sempre que chego lá ele pergunta: O que vai??
    Como assim o que vai??? o guri é cliente dele há +/- quatro anos, e ele ainda pergunta o que vai???
    Acho que os cabeleireiros sofrem de problemas de memória!!!
    Abração e numa dessas eu apareço numa reunião!!Não esqueci!!

    ResponderExcluir
  2. Coitado do Estanislau, ficou nove reais mais pobre, todo mês.
    Mas, heei colega! Não desanime: o cabelo voltará a crescer - nesse caso, demorará um pouco mais, mas ele cresce - e mudar de vez enquando, cá entre nós, faz bem pra saúde, que seja a mental.

    ResponderExcluir

<< >>