O melhor em campo

Futebolisticamente falando, nunca fui soberbo. Tenho certa intimidade com a bola nos pés, é verdade, mas não é nada que se diga "meu Deus, é o novo Zico". Tentando arranjar uma definição justa, posso dizer que sou um jogador comum, com esporádicas boas atuações e que não serve pra perna-de-pau.
A verdade é que eu sou fissurado em futebol. Quer me ver conversando animadamente durante horas, é lançar o esporte no assunto. Gosto de observar táticas, deliberar a respeito dos campeonatos profissionais e, claro, comentar as atuações que temos durante a semana em nossas peladas amadoras.
Falando nisso, fundamos um time de futebol de campo no início desse ano. Era um sonho antigo da gurizada do bairro, reunir a galera que se criou jogando bola nos paralelepípedos, nos campinhos, ou mesmo nos intervalos da várzea que rolava no campo que tem aqui na frente de casa. Sempre foi um divertimento comum que, finalmente, após algumas tentativas frustradas, engrenou.
Por isso, todo sábado, faça sol - e apenas sol, pois com chuva os jogos são cancelados - nos reunimos, bebemos cerveja, jogamos bola e voltamos a beber cerveja. Uma delícia. O lado positivo é que se cria um grupo de convivência, dá saudade de encontrar os parceiros, trocar aquela idéia boleira, falar do passe milimétrico que acertou, do chapéu lindo dado no adversário, do golaço marcado pelo artilheiro do time. O lado negativo é... Bah, nem há lado negativo. Futebol de sábado à tarde é um bálsamo.
Jogo de volante. Comecei o ano na lateral-direita, posição sobre a qual já escrevi n'algum texto perdido nos entrementes desse espaço, mas acabei perdendo a posição pro Xebeco, vulgo Mil Faces. Esse apelido deve-se ao fato de a cada semana ele aparecer com um visual diferente, principalmente no que tange à barba, que muitas vezes parece que foi feita pelo Wolverine. Bem, gosto não se discute, né, vá lá.
O fato é que, após o Beco me roubar a lateral com muita competência, restou-me o calabouço do futebol: o banco de reservas. Nada é mais temido por quem joga bola do que não figurar entre os onze titulares. A sensação de exclusão é abissal e, se o cara não tem o psicológico bem trabalhado, é capaz de cair na noite e atirar-se aos devaneios da vida. Por sinal, foi o que aconteceu comigo.
Desolado por esquentar a ponta direita do banco, comecei a sair toda sexta-feira à noite e encher a cara. "Ah, que saudades que tenho da aurora da minha vida"... Bons tempos, é verdade, mas me transformavam num caco no dia seguinte, ou seja, eu repetia as atuações pífias e seguia como reserva eternamente.
Certo dia, porém, resolvi dar um basta naquela situação esdrúxula e tomar uma providência. Com o coração em pedaços, abandonei a perdição, virei um atleta sério e passei a dormir cedo às sextas-feiras. Estava decidido a recuperar a titularidade e mostrar a mim mesmo que seria capaz de apresentar um bom futebol. A fase de desintoxicação sempre é dolorosa, exige renúncias e muita força de vontade, mas eu consegui.
O treinador, conhecedor do meu histórico futebolístico, sabia que eu havia jogado certa vez como volante, isso noutro time que fundamos, mas que não deu certo. Tive algumas atuações destacadas, e isso credenciou-me a receber uma nova chance na meia-cancha. Abracei-a como um tamanduá faminto, essa que é a verdade. É volante que queres, é volante que terás. Entreguei-me de corpo e alma à função e passei a entrar em campo babando feito um touro nas arenas da Espanha.
Não cheguei a chifrar nenhum adversário - posso ser touro, mas sou touro mocho. De todo modo, a verdade é que meu esforço começou a ser reconhecido pelo time. Longe das tentações da balada, imprimi um ritmo interessante no meio-campo do Calixto, esse é o nome do time, e passei a receber elogios dos colegas de equipe. Foram duas, três, cinco partidas como titular, sempre com uma atuação regular e elogiável. Nada que se diga, "céus, está surgindo um novo Falcão", mas pra quebrador de bola eu já não servia mais.
Veio, então, o apogeu no último sábado. Ao fim de cada partida, sempre organizo a votação do melhor em campo, uma brincadeira que vários times de sábado fazem para ressaltar a atuação do colega que foi bem naquele dia. E eu, sempre ali, marcando votos para os outros, recebendo alguns isolados vez ou outra, ficava pensando em quando chegaria a minha vez. Nosso time tem vários bons jogadores, decisivos, diferenciados, o que os torna focos de voto toda semana. Batê-los não é tarefa fácil, o que me conformava a cada partida em que meu nome não figurava entre os melhores.
No último sábado, porém, um facho de luz divina veio do céu, e algo mágico aconteceu. Com a superação de um Joseph Climber, entrei em campo envolto por uma aura cósmica, sísmica, geométrica, tântrica, heterótrofa, sei lá, mas joguei muito bem e fui, hosanas, aleluia, eleito o melhor em campo com oito votos. Estive a dois votos de um orgasmo futebolístico, acreditem.
A cada colega que votava em mim, percebi que realmente atingira o cume. Ao fim do primeiro tempo, Cláudio, companheiro de tantas jornadas e também de Calixto, abalroou-me na saída do gramado e, profeta, sentenciou:

- Cara, tu tá jogando muita bola.

Oito modificações foram efetuadas pelo treinador no intervalo. Somente três jogadores permaneceram em campo: o goleiro, o Alemão e eu. Para que vocês entendam, o Alemão é uma espécie de talismã do Calixto. Se tá ruim, toca nele, que ele resolve. Tem um fôlego de camelo e um futebol primoroso. Para completar a perfeição efusiva daquela volta para a segunda etapa, alguém precisava usar a braçadeira de capitão no segundo tempo. Superando Negão Lúcio, o goleiro Kiko, Alemão e vários outros jogadores rodados que estão em nosso time, eis que o treinador, num gesto que me fez escutar querubins tocando suas harpas em alguma nuvem ali perto, pôs a faixa em meu braço esquerdo. Eu, um capitão. Estufei o peito, marejei os olhos, pisquei pro céu e proferi, baixinho, o meu lema: Que momento!
Foi, sem dúvida, um dia especial. Uma semana antes do meu aniversário, soou como um presente adiantado, um acontecimento que ficará eternizado aqui, nas linhas desse blog, porque nunca fui craque, sempre joguei meu futebolzinho feijão com arroz e, na base da superação, provei que força de vontade é uma ferramenta interessante para superar as limitações.
Ainda sinto falta da minha cervejinha na sexta à noite, é verdade, contudo não esquecerei a emoção que senti ao ser eleito, pelo menos uma vez, o melhor em campo numa partida de sábado à tarde. A partir de agora, surge uma nova meta: marcar um gol!

4 comentários:

  1. Cara, certamente um dos melhores textos que li aqui nesse blog, depois do que tu fala do teu avô.
    Fico feliz por ter sido citado no texto e mais ainda por ter profetizado o que viria pela frente!
    Cabe ressaltar que tu foi eleito o melhor em campo, ganhando inclusive do Fazano, que marcou os dois gols da vitória de 2 a 0.
    Agora resta ir em busca da meta do primeiro gol! hehehehe

    Abraço!

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  2. Que esperarei você narrar aqui também. :)
    Bjitos!

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  3. Menino do céu, lendo o texto eu tive a impressão de que isso já tinha acontecido. Que loucura!!!

    Bjo

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  4. Tu sabe que eu não gosto muuito de futebol, e em termos de talento futebolístico eu e nada somos equivalentes, mas lendo esse texto chega a dar vontade de gostar do esporte!

    Adorei, o texto, e ri pacas com "...aura cósmica, sísmica, geométrica, tântrica, heterótrofa, sei lá,..."

    Abração!

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