Caixinha de música

Antes de começar a ler esse texto, faça uma pequena pausa. Inspire fundo e procure o maior estado de relaxamento e leveza que seu cérebro conseguir. Feche os olhos por um instante e mentalize uma paisagem que lhe trasmita a mais absoluta paz de espírito. Faça isso por breves e intensos segundos, de modo que sua essência pareça levitar. Agora, embuído dessa mística aura de equilíbrio, dê seguimento à leitura do texto.

Propus essa parada porque é com a mais absoluta paz de espírito que redijo estas palavras. Mesmo que o mundo esteja desabando, encontrei uma maneira possível de acalmar meu coração com ternura e parcimônia. É quase como se minha vida dependesse disso, de flutuar numa brisa leve, ao som de uma música como... o Tema de Lara.

Minha avó tem uma caixinha de música bem antiga. Ela tem formato de um piano de cauda e servia, antigamente, como porta-jóias. Havia num dos pequenos compartimentos uma bailarina pequena que, quando colocada sobre o imã do piano com a tampa aberta, funcionava como um palco onde ela deslizava suavemente ao som da canção que toca a caixinha quando lhe era dada corda.
A música que tocava chama-se Tema de Lara. Abrir a tampa da caixa e ouvi-la constitui um momento sublime da minha infância que, confesso, até já tinha esquecido. Foi quando, neste fim-de-semana, revirando o guarda-roupas da vó, encontrei, num cantinho, aquele objeto que me hipnotizava durante horas.
Sempre alertado pelo valor estimativo da caixa, ela permitia que eu desse corda e ouvisse a melodia suave que parecia emanar de dedos leves tocando aquele piano. Quando acabava, eu tornava a fazê-la funcionar diversas vezes até enjoar.
Naquela época, ainda criança, minha preocupação era somente curtir aquela delícia de momento com suavidade, sem nem imaginar o quanto poderia vir a fazer diferença um dia. Sábado, porém, quando vi a caixinha após tantos anos de ostracismo, meu coração pulou. Peguei-a com cuidado e constatei que as dobradiças da tampa quebraram. Cheguei a pensar que não funcionaria mais.
Contudo, ao retirar a tampa, o som que meus ouvidos absorveram me fez voltar quase vinte anos no tempo e, num gesto praticamente involuntário, cerrei os olhos por um instante e experimentei a mais pura nostalgia dos meus tempos de criança.

Era um tempo bem delicioso de se viver. Os cabelos, ainda soltos, voavam ao menor sinal de vento, o sorriso era fácil, as feridas eram todas externas e saravam assim que a casca caía. Durante as férias, as casas das avós serviam como refúgio, diversão e tornavam-se sinônimo de perfeição.
Com as avós, escutava o Sérgio Zambiasi na Farroupilha, me empanturrava com massa de pão crua, jogava canastra, montava fazendinhas, comia pão de cabritinho, cantava a música do Sereno antes de dormir e brincava de matar bugios de mentirinha.
Com os avôs, tratava os galos, me divertia curando bicheiras nas ovelhas, perguntava o nome de todos os passarinhos, comia coalhada, casquinha de queijo do dia anterior, pescava no rio, flutuava numa bóia preta, brincava com as pedrinhas e chorava de ciúmes do cavalo vermelho.
A vida era, em suma, como o Tema de Lara da caixinha de música: leve.

Chaplin, certa vez, disse que a vida deveria ser o contrário, onde nasceríamos velhos e faríamos o processo inverso, rejuvenescendo com o passar dos anos, vivendo as alegrias da infância no fim da vida e terminando tudo num belo orgasmo.
Talvez tudo não fosse bom se fosse desse jeito, mas a verdade é que o tempo leva a suavidade da vida para um lugar desconhecido, dando lugar aos problemas, dissabores, perdas e rugas. Além disso, há os medos, dúvidas e os erros. Todos, somados, são fatores que subtraem a graça da vida, o colorido da felicidade e a magia dos tempos de infância.
Quando recordo o tema da caixinha de música da minha vó, esqueço de tudo que me deixa com o coração apertado. Flutuo. Absorto, deixo de pensar em qualquer coisa por alguns minutos, enquanto a nostalgia hipnotiza meus pensamentos e me reporta ao tempo em que não havia nenhuma dificuldade para ser feliz.

Ao acordar, quanta ironia, a melodia da caixinha acabou, a bailarina não existe mais e a felicidade já toca no piano de outro. Queria, nesses momentos, que fosse possível apenas dar corda e começar tudo outra vez. Não é. Paciência.

7 comentários:

  1. Sabe, Antônio... ser adulta me dói de vez em quando.
    Mas que adulta infeliz eu seria se não tivesse tido uma infância feliz e se não fosse cheia de boas recordações hoje em dia?
    Acabo de lembrar da bóia de cãmara de pneu deslizando pelas sangas do Itaqui e do pão de cabritinho!!!!!
    Muito obrigada por me trazer de volta essas lembranças.
    E vamos 'sonhar' com aqueles tempos mais vezes.

    Tô de volta, guri!

    Beijos.

    =)

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  2. é... o Sr. Tempo!

    tão nostalgico e tão esperançoso... é isso q faz a beleza da nossa vida: podermos olhar pra trás e admirarmos o que fizemos e podermos olhar pra frente e admirarmos o novo dia nascendo!

    saudade de vc por aqui! vc faz muito bem a blogosfera!

    bjo

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  3. Nostalgia pegando geral. Meu texto também é daquele tipo em que você fecha os olhos e revive os momentos. E é como se o tempo nem tivesse passado, como se, ao abrir os olhos, algumas pessoas tão importantes e tão queridas ainda estivessem aqui.
    Lembrei de você ao escreve-lo. Lembrei de mim ao ler você.
    Beijos

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  4. Tema de Lara... minha vó fala o tempo todo nessa música, mas eu nunca lembro que melodia é. Vou procurar na net ;)

    Passei essa semana mais ou menos desse jeito, em alguns momentos pelo menos: comendo a comidinha da vó, lendo na praia, perguntando o nome dos passarinhos pro vô...

    Fico feliz que você esteja com espírito leve.

    Abraço!

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  5. Sem palavras...
    Sabes quem me deu essa caixinha de música? Teu vô Gentil, em 1965, como presente de Natal.
    Muito obrigada por teres feito eu relembrar de momentos felizes e inesquecíveis. Tu, realmente, és um neto muito especial.
    Um beijo carinhoso da tua velha vó que te ama muito.

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  6. Que ironia do destino!
    eu estava à procura de uma música que eu ouvia numa caixinha de música, em forma de piano, que pertencia a minha tia. O que eu achei na casa da minha vó foi apenas o que dava som à música, pois a caixinha foi toda destruída. Como quem cuida de peças de cristal peguei aquilo com todo o cuidado do mundo e comecei a dar corda com os dedos. Aquele som foi mágico. Deixei aquilo na minha vó, mas infelizmente ele foi perdido. Agora procuro aquela música e não acho! Os toques me fazem flutuar toda vez que lembro!

    *-*

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  7. Querido Antônio,me senti feliz,ao ver vc lembrar de uma infância perfeita,pelo privilégio do que vc viveu,viu e experimentou,que nostalgia gostosa,eu tb tive uma infãncia feliz,não exatamente nas condições melhores que ao ler seu texto se vê,mas feliz sim,mas ao ler a frase memóravel de chaplin,me nego a concordar com o que diz o mesmo,sobre nascer velho e morrer no orgasmo.Deus fez tudo perfeito,pois infelizmente milhares de nós não tiveram uma infância, perfeita que traga lembranças boas,mas ao crescer e envelhecer,talvez tiveram a chance e mais uma oportunidade de ser feliz e ter lembranças bos viu só como Deus pensou em tudo.Ás vezes sem querer parecemos egoístas ao lembrarmos da infância de alguns só como nós,que bom que vc é uma dessas pessoas que teve uma infância linda igual a minha,isso é só uma reflexão,tá,gostaria de ver mais (milhares de memórias felizes de outrem),abraços e torço pra que vc na jornada da sua vida continue FELIZ!!!

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