A distância entre o duradouro e o efêmero

- Cara, tô subindo pro freezer tudo o que tenho de bebível na geladeira...
- Aham.
- O último foi um frasco de molho shoyo.

***

Esse tipo de diálogo ilustra momentos da minha vida nos quais eu faço o que há de melhor para qualquer pessoa: ficar sem ar de tanto dar risadas. Passei o dia hoje na casa de um grande amigo, que também está curtindo suas férias igual a mim. Grande nos dois sentidos, uma vez que o cidadão tem dois metros de altura. Thiago é o nome dele.
O cara em questão faz parte de um seleto grupo de pessoas na minha vida que eu classifico como amigos de verdade. Felizmente, tenho a sorte de ser um cidadão que se relaciona muito bem em qualquer lugar que chega. Ainda assim, não é todo guaipeca que eu deixo morar na cobertura com vista pro mar do meu coração. Durante meu quase quarto de século de existência, poucos conseguiram chegar até lá, e uma minoria ainda permanece instalada há alguns anos.
Isso se deve ao fato de que eu sou um tanto seleto em minhas relações. Conheço muita gente, sou carismático, puxo papo com Deus e o mundo, mas não costumo abrir minha vida por aí, ainda que o fato de publicá-la num blog contrarie essa tese. No entanto, o que aqui está escrito não é nem dez por cento da pessoa que realmente sou e que somente meus companheiros inseparáveis conhecem.
Filei a bóia na casa do Thiago na cara dura, nossos quase dez anos de amizade permitem isso. De quebra, ajudei-o, com muito esforço, a esgotar o estoque de cerveja que o rapaz mantinha religiosamente em sua morada, fato que rendeu uma tarde de muita conversa franca, música gaudéria à revelia, trinta e três partidas de dominó (17 vitórias minhas, 12 dele e quatro empates) e um fardo de gargalhadas.
Conversar com esse meu amigo é sempre a origem de frases que permanecem em meu pensamento por alguns dias, devido à profundidade das reflexões e à franqueza com que dividimos o que ocorre em nossas vidas. Ouvir o cara dizendo coisas do tipo: "meus melhores amigos não são aqueles que estão comigo todos os dias", sendo que realmente nos vemos de tempos em tempos, já que a correria não nos permite tanta aproximação, ou escutar conselhos valiosos e, sobretudo, sensatos, são conquistas que só atinge uma pessoa que realmente sabe construir seus laços de amizade com solidez.
Tive essa sorte, devo confessar. Já escutei que as pessoas são diferentes, que amigo é aquele que te pega pelo braço e diz "vem, que eu te levo". Ouvi também que as pessoas passam e até mesmo que uma certa dose de infantilidade é aceita no caso de a pessoa estar apenas tentando defender seu amigo de fé, irmão camarada. Ainda assim, o curioso é que, de todas essas características, não consigo encontrar sequer uma em meus amigos de verdade.
As pessoas são todas diferentes, é claro, mas o conceito de amizade eterna não me parece ser tão ramificado assim. Meus amigos, por exemplo, não dizem "vem, que eu te levo". Todos eles, sem exceção, dizem "você pode vir conosco se quiser, mas esteja certo de que nós estaremos contigo seja qual for a tua escolha". Amigo não manipula, mas aceita suas atitudes; não impõe as roupas que você vestirá, a festa que fará, ou com quem você se relacionará, mas dá idéias, sugere caminhos, busca um denominador comum rumo à felicidade.
Se alguém passa em sua vida, é porque não é, nem nunca foi amigo. Pode ter sido importante, companheiro, até mesmo indispensável num dado momento da caminhada. Contudo, se é de verdade, será indispensável para sempre. Pode, sim, cometer infantilidades, todos podemos errar, não é mesmo? Ainda assim, não tem o direito de interferir no passado, no que já estava construído e em assuntos nos quais não tem completo conhecimento de causa. Isso, pelo menos para mim, é o verdadeiro sufocar, determinar e, principalmente, é o medo de perder uma pessoa por pura falta de segurança. Se lhe falta segurança quanto à amizade de alguém, será que é mesmo de verdade?
Meus amigos me completam, me acrescentam qualidades e me tornam melhor. Tornar alguém melhor significa apresentar a diversão, porém sem vulgarizar; contar piadas sujas, mas não fazer dos palavrões seu principal vocabulário. Aliás, todas essas impressões aqui externadas até agora me fizeram refletir nos últimos dias sobre o verdadeiro significado de decepção, ser importante e, principalmente, fazer a diferença na vida de alguém.
Não me interessam as maravilhas efêmeras, o conselho de ocasião, aquele ombro amigo que aparece milagrosamente na hora da pior dificuldade. Prefiro que a pessoa esteja comigo desde o início, que não mostre um lado desconhecido da noite para o dia e acabe pondo em dúvidas todos os conceitos pregados durante vários meses. Meus melhores amigos cometeram e ainda cometem vários erros e permitiram, algumas vezes, que eu pensasse que estava sozinho, devo confessar. Todavia, todos, sem exceção, retornaram cedo ou tarde, e me fizeram enxergar que eu estava enganado.
Eu conto muito com quem eu amo, pois sei que todas essas pessoas também me admiram, conhecem o meu caráter e meus sentimentos. São pessoas que me criticam sem doer, porque sabem a maneira certa de manobrar comigo. Posso, sim, criar novos vínculos, permitir que outras pessoas venham a ser especiais em minha vida. No entanto, não deixarei jamais de cultivar os bons e velhos laços, aqueles que, mesmo empoeirados, ainda protagonizam os melhores pealos. É como disse o Thiago numa frase que acabei completando:

- É um sentimento que não começou ontem, né, cara.
- E que não vai terminar amanhã...
- De fato.

Sorte de quem opta por isso. Ainda que algumas músicas sirvam quase que exclusivamente para as histórias de amor, vale colocar essa frase também no campo das amizades, abusando do sentido metafórico: "vai sentir o amargo de outras bocas lembrando meu sabor..."


Você Vai Ver
(Zezé Di Camargo e Luciano)

Você pode encontrar
Muitos amores
Mas ninguém vai te dar
O que eu te dei
Podem até te dar
Algum prazer
Mas posso até jurar
Você vai ver
Que ninguém vai te amar
Como eu te amei...

Você pode provar
Milhões de beijos
Mas sei que você vai
Lembrar de mim
Pois sempre
Que um outro te tocar
Na hora você pode se entregar
Mas não vai me esquecer
Nem mesmo assim...

Eu vou ficar
Guardado no seu coração
Na noite fria solidão
Saudade vai chamar meu nome
Eu vou ficar
Num verso triste de paixão
Em cada sonho de verão
No toque do seu telefone
Você vai ver...

3 comentários:

  1. Muito bom o texto, bruxo! Um dos melhores que já li por aqui!

    Pode sempre contar comigo, porque tu sabe que tu é meu irmão do coração!

    Abraço!

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  2. Já que vc fez uso de uma música também vou fazer. É Marenco lógico, Pra Meu consumo.

    Têm coisas que tem seu valor
    Avaliado em quilates, em cifras e fins
    E outras não têm o apreço
    Nem pagam o preço que valem pra mim


    Nossa prosa foi algo sem preço. Se as férias acabassem amanhã já teria valido a pena...

    Muito bom ter um amigo como você. Um quebra costela. Baita honra estar neste baita texto.

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  3. Esse texto é tem uma mensagem nas entrelinhas que todos devíamos refletir, por isso ele é bom.

    Sempre estou refletindo sobre como é importante ter amigos em que se possa confiar. Aqueles que tu fala e eles te escutam de verdade. Aqueles que tu se espelha nas melhores qualidade e aprende com os piores defeitos. Aqueles que havendo um problema, ofereceram a ajuda necessária, sem medidas. Aqueles que não importa a distancia ou o tempo longe, ao primeiro contato seria como nunca estivessem tão próximos.

    Apesar de muitos afirmarem que existem fases e que todos passamos por elas em diferentes momentos, amigos são aqueles que realmente ficam, não importando a trajetória de cada um, nos nossos pensamentos diários, no nosso cotidiano, nos nossos erros e acertos.

    Não existem melhores amigos, não existem amigos fiéis. Existem sim, os amigos que ficam, aqueles que estão ali, presentes ou em espírito, ao nosso lado dividindo a vida ou em nossas mentes.

    Grande abraço de um amigo para outro amigo, pois tu é um que permanece com cadeira cativa.

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