O Calhambeque - Capítulo 3

Dentre as inúmeras lições da série "carros que você nunca deveria ter comprado", balizada pela experiência traumática com a Saveiro, pelo menos duas destacam-se pela positividade. Sim, há uma flor no meio do esterco que se pode exaltar em meio a tanto choro e ranger de dentes.
A primeira lição é prática e puramente de caráter mecânico. Engana-se quem pensa que os homens sabem tudo a respeito de carros. Alguns de nós, advirto, têm é de dar graças a Deus por ter a carteira de motorista. E isso não é nenhuma crítica, afinal de contas, a teoria é simples: se você não passou por uma situação que exija determinado conhecimento, provavelmente não aprenderá a lidar com ela apenas por curiosidade.
Fazer um carro pegar no tranco, por exemplo. Não existe curso profissionalizante para isso. Esse tipo de procedimento só aprende quem, naturalmente, está em apuros, com muita pressa e seu veículo engasgado, morto e fodido, não necessariamente nessa ordem.
Ora, passei por tanta calamidade a bordo daquela caminhonete mostruosa, que, quando morreu a bateria pela primeira vez, agi da maneira que qualquer homem centrado faria diante de uma bizarrice desse tipo: emputeci. Lembro que a Dani - que protagonizará mais tarde a segunda lição - murchou sentada na cabine enquanto eu berrava impropérios aos quatro ventos. Havia estacionado tão direitinho à frente do prédio onde ela morava, estava tudo tão bem naquele dia. Foi querer ir pra casa, virar a chave e começar o martírio.
Quem é motorista há de concordar comigo: é melhor quando a bateria morre de vez, do que quando fica naquele "não sabe se 'vai aos pés' ou desocupa a moita". Poderia substituir a expressão anterior por uma bem chula, mas deixa assim. O fato é que é melhor ouvir o 'tlec' da bateria que lhe assegura que não vai mesmo funcionar, do que ficar naquela expectativa de virar a chave e escutar aquela embromação de motor com ronco de leitão, que dá a impressão de que, se insistir, até pode ser que ligue. É pior do que ouvir jogo de futebol no rádio.
Passei bons minutos suando, chamando até a mãe do Badanha de filha-do-cão-desgranida-da-moléstia e tentando, sem sucesso, ligar aquela tranqueira. Até que, entre as inúmeras pessoas que passavam pela rua e presenciavam aquela cena dantesca e humilhante, um tiozinho teve compaixão e sugeriu:

- Acho melhor fazer pegar no tranco...

Claro, que ideia brilhante! Eu ali, dê-lhe virar a chave inutilmente, quando seria tão mais simples fazer pegar no tranco e... peraí:

- Tu sabe fazer pegar no tranco, né? - minha cara de 'como se faz essa p*rra' deve ter denunciado.

- Bem, claro, é só pegar e... e...

Há momentos em que um homem precisa abandonar sua vaidade e agir feito um humilde camponês-de-nobre-coração-que-vai-todos-os-dias-ao-bosque-recolher-lenha:

- ...eu não sei fazer pegar no tranco.

Aqui cabe um agradecimento. Obrigado, Deus, por manter na Terra pessoas de bom coração. O tio podia rir da minha cara, tripudiar sobre minha desgraça, como provavelmente você, leitor sádico e oportunista, está fazendo nesse momento. Mas, não, o altruísmo falou mais alto e ele deu a explicação:

- É simples, basta largar na descida, deixar embalar, pisar na embreagem, engatar a segunda marcha e soltar.

- E pega?

- Pega.

- Pega mesmo?

- Vai na fé.

Não que eu duvidasse, não é isso. A verdade é que eu não tinha entendido todo o procedimento e estava tentando ganhar tempo pra assimilar todo aquele processo ridículo pelo qual só passa quem adquire um carro velho.
Pois bem, encarei o desafio. Por sorte, estava numa descida; por azar, era uma rua movimentada pra cacete. E com um semáforo logo abaixo, ou seja, exigia um plano de ação rápido, preciso e pontual. Precisávamos agir no exato momento em que o semáforo estivesse verde e a rua pouco movimentada. Trocando em miúdos, aquela hora em que os anjos dizem "amém".
Enquanto isso, na paz celestial que habita o céu, um grupo de querubins orava placidamente. Lá embaixo, o sinal estava vermelho. Na rua, alguns carros trafegavam. A oração angelical prosseguia. O tio cuidava o trânsito. Eu, de olho na sinaleira. De repente, a anjaiada arregalou o grão dos olhos e proferiram, todos em coro:

- AMÉM!

O sinal abriu. Cessou o fluxo de veículos. Ágil como um guepardo, ajudei o tio a empurrar a charanga, entrei no carro, fechei a porta, deixei correr, pisei na embreagem e... bateu o pavor! Esqueci o resto! Atônito, olhei pro cara, que berrou:

- Agora solta a embreagem!

Sem titubear, tirei o pé e a Saveiro, num solavanco que me lembrou um peido de égua, ligou! À toda velocidade, emocionado por ter feito um carro pegar no tranco pela primeira vez na vida, ainda estiquei o braço para fora e agradeci à ajuda:

- Obrigaaaaaaaaaaaa....

Antes de terminar, a Dani gritou, quase em pânico, para que eu prestasse a atenção no trânsito. Que chato, nem pude agradecer a tão belo gesto de caridade. De qualquer forma, fica aqui registrada minha eterna gratidão às pessoas que ajudam quem está empenhado com suas latas-velhas nas ruas do Brasil afora, ensinando a pegar no tranco e talicoisa.
Por falar na Dani, foi com ela que aprendi a segunda valiosa lição: se você quer saber se uma mulher lhe ama de verdade, compre um carro velho. Porque, sinceramente, entrar naquela birosca era um ato de amor ágape, fruto do sentimento mais doce e puro que uma donzela pode sentir por seu príncipe encantado.
E a Dani, sorridente, me fazia lembrar a música interpretada pelos Demônios da Garoa, aquela da Amélia, que a certa altura diz que ela "achava bonito não ter o que comer". No caso da minha namorada, achava bonito andar numa Saveiro caindo aos pedaços. Bom, na realidade, não achava coisa nenhuma, mas o fazia em apoio à minha aquisição desastrada, aceitando aquele cárcere privado com parcimônia.
Demorou um tempo para a gente se acertar de verdade, mas hoje estamos aí, mais faceiros que tico-tico na chuva, dando risadas daquele período de trevas e infelicidades veiculares. Mas, ainda assim, lhes asseguro: a Dani, assim como Amélia, é que é mulher de verdade.

No próximo capítulo, finalmente livre da bomba chamada Saveiro, contarei a história do meu segundo veículo: o golzinho marrom.

Não percam!

22 comentários:

  1. Bah, esse foi o capítulo que eu dei mais risada! Tá demais!

    Eis que surge o novo David Coimbra!

    To ansioso pelo próximo Capítulo!

    Abraço!

    ResponderExcluir
  2. Olha, não porque fui mencionada honrosamente neste capítulo, mas foi o mais divertido mesmo.

    O pior de tudo é ler e lembrar das situações... bem que podia ser só fruto da tua imaginação! ha ha ha.

    Agora que venha o gol e suas peripécias!

    Beijão, meu escritor favorito!

    ResponderExcluir
  3. Nusssssssss


    Ri muito aqui com tudo isso...
    Cada vez fica melhor[pior]

    rsrs

    Espero o próximo Capítulo.


    Até lá.

    ResponderExcluir
  4. Ton,
    to devendo a visita nessa tua saga.
    Volto mais tarde, com mais tempo.

    Adoro você :*

    ResponderExcluir
  5. Cláudio,

    Menos, né, meu bruxo? Comparar meus humildes relatos ao mestre é quase uma heresia, mas agradeço a referência.

    Abração!

    ResponderExcluir
  6. Dani,

    Ah, amor, pensa que, se não tivesse acontecido, não teria tanta veracidade, nem tanta graça, hehehe!

    Beijão!

    ResponderExcluir
  7. Tati,

    Olha, não sei se vai piorar, mas ainda tenho história pra contar, hehe. Valeu, guria!

    Beijo!

    ResponderExcluir
  8. Fê,

    Tu tem trânsito livre por aqui, e sabe bem disso. Ah, e também mora no meu coração!

    Beijo!

    ResponderExcluir
  9. Meniinoo, você tem um dom de nos fazer rir, um texto bem humorado e muito interessante.

    beijos :*

    ResponderExcluir
  10. HAHAHAHAHAAHAHA nossa, dei muita risada, sério.

    "Fazer um carro pegar no tranco, por exemplo. Não existe curso profissionalizante para isso. Esse tipo de procedimento só aprende quem, naturalmente, está em apuros, com muita pressa e seu veículo engasgado, morto e fodido, não necessariamente nessa ordem."
    -morri

    Hahaha, sempre recomendo 'o Que Momento!' por aê, viu. :)
    Espero o capítulo do Golzinho Marrom!
    Beijos!

    ResponderExcluir
  11. Karine,

    Obrigado pelos elogios, guria. E volte sempre, é claro. =)

    Beijo!

    ResponderExcluir
  12. Jéssica,

    Mazahhhhh! Recomenda! Recomenda! Recomenda! Quanto mais leitores, melhor. E, se tiverem a tua qualidade e bom humor, melhor ainda!

    Beijo!

    ResponderExcluir
  13. Nossa que legal, confesso que achei que não fosse conseguir ler por ser uma pessoa totalmente desinteressada por carros, sequer me dei ao trabalho de tentar dirigir aos 21 anos. No entando, você prende e conduz a gente direitinho. Gostei.
    E, de fato, Dani te ama...rs Se bem que também não ligo para essas coisas, mas isso é raro nas mulheres né?

    bjs

    ResponderExcluir
  14. Fantástico! Totalmente incrível!

    Minha mãe vai ter um treco de tanto rir quando eu ler essa série pra ela.

    Abraço!

    ResponderExcluir
  15. BarbaridadE.. E toda vez que eu venho ler a saga do Antônio eu me divirto mais!!

    ResponderExcluir
  16. Hehehehehe

    Lendo estes teus textos acabei por lembrar-me das nossas visitas a revendas quando tu queria te livrar desta bomba. Lembra-te? Bons tempos meu caro, apesar dos pesares.

    Ótimos textos.

    Forte abraço.

    ResponderExcluir
  17. Rapaz, otimo texto. Me diverti pacas.
    queria apenas dar 2 exemplos que podemos (ainda) tirar alegria dessas horas de furia e odio que nenhum psicopata ganha.
    1) a ultima vez q meu carro deu esse sinal de vivo-morto, acho que eu confiei tanto na minha fe, que insisti com a chave girada ate piscar tudo que foi luz (parecia um UFO), o para brisa funcionar, enfim.. tava td uma maravilha, ate meu vizinho (moro em condominiom e as garagens sao lado a lado) enfiar o carao dentro da janela e perguntar se tava td bem. Era obvio que nao estava.. dai ele me solta a perola "nossa.. ta piscando tudo! torce pro odometro zerar tambem!"
    2) Um casal de amigos depois de anos tentando conciliar ferias, conseguiram ir para o litoral norte de sp. Num Escort sei la q ano. E o fato foi que a viagem ficou marcada na vida deles! Para eles que nunca tinham ficado umas ferias tao proximas, passaram um tempao juntos.
    Dentro da boleia do guincho do seguro que teve que buscar eles a centenas de Km e voltar.
    Com eles.
    Abracos!

    ResponderExcluir
  18. Laís,

    Realmente, ela me ama. É uma virtuosa, que já passou cada uma do meu lado e segue firme feito palanque em banhado. Sorte a minha!

    Beijo!

    ResponderExcluir
  19. Marquinhos,

    Ah, tua mãe não paga imposto pra rir, daí não vale. Tuas gargalhadas têm mais peso crítico, devo confessar. =)

    Abraço!

    ResponderExcluir
  20. Thasci,

    Pois continue dando as risadas que lhe couberem, guria! =D

    Beijo!

    ResponderExcluir
  21. Bruno,

    Bah, primo velho, nunca esqueço daquela manhã de sábado onde saímos a rodar por NH e tu deu nos dedos do tiozinho do Fusca verde, hehehe!

    Grande abraço!

    ResponderExcluir
  22. Chris,

    Não deixa de ser consolador sabe que não fui o único azarado com carros-problema, hehehe!

    Abraço!

    ResponderExcluir

<< >>