Calce um par de tênis antes de correr

Você.

É, você mesmo. Há poucos segundos, abriu este blog em seu computador, na esperança de ler algo novo, não é mesmo? Pois bem, você tem um segredo. Algo obscuro, guardado no recôndito de seu passado, e que, em circunstâncias normais, prefere não lembrar, evitando assim aquele sentimento de vergonha alheia contra si próprio. Estou errado? Não, né?
Pois bem, se você balançou a cabeça afirmativamente e recordou um fato tenebroso em sua vida, prepare-se: vou revelar um de meus segredos no próximo parágrafo. Em linhas gerais, é o tipo de história que não se conta num blog pessoal, mas, querem saber? É chegado o momento da verdade. E ela precisa ser dita.

Eu tinha quinze anos, mais ou menos. Era um guri franzino, ainda treinando os primeiros movimentos do barbeador e que se assustava com a rapidez impressionante com que os pelos povoavam certas partes do meu corpo. Ainda estava naquelas de pintar o cabelo de amarelo e talicoisa, um tempo muito mal definido, por assim dizer. Andava de galho em galho, granjando um verdinho, feito galinha choca em tarde de verão, meio que experimentando as novidades da vida.
Nesse entremente, foi que deu-se o sucedido. Havia dois amigos pelos quais nutria efervescente admiração. Eram destemidos, faziam sucesso com as gurias mais lindas do colégio, pareciam não ter medo de nada, nem precisar usar casaco em dias frios, coisa que minha mãe tanto insistia para eu fazer. Era sublime admirar a valentia daqueles dois e de outros tantos, que pareciam ter coragem para dançar um tango com o capeta em dia de Finados.
Mal sabia eu que cabeça vazia é oficina do diabo. Numa daquelas madrugadas em que pensávamos no que fazer, veio uma conversa enviesada sobre pichação. Pouco conhecedor da prática, bastaram alguns minutos para que eu ficasse envolvido na habilidade com que eles descreviam seus rabiscos, nos planos tão bem bolados para não serem pegos em flagrante. Aquilo foi me inebriando de tal forma que, quando percebi, já estava dentro do esquema. Naquela noite, tornei-me um pichador.
Mas, antes que você me julgue e passe a proferir maledicências contra meus atos de vandalismo, advirto: quando Deus Nosso Senhor quer, até égua véia nega estribo.
O plano era simples, bastava procurar muros limpos, alvos, branquinhos feito aquelas peças de roupa das propaganda de um sabão em pó qualquer, dar o seu recado, ser extremamente rápido e, naturalmente, sair à francesa, sem dar bandeira. Além disso, por via das dúvidas, usar um casaco que tivesse capuz, de modo a dificultar o reconhecimento, uma vez que o plano seria executado em plena vizinhança, para tornar a madrugada ainda mais emocionante.
Lá estava eu, com meus quarenta e poucos quilos, um fiapo de gente dentro de um casaco emprestado, a cabeça imersa no capuz enorme e um bastão daqueles de lustrar sapato preto cheio até a borda, para garantir o sucesso da operação. Usávamos também codinomes, de modo que, se precisássemos emitir algum sinal de alerta, nossas identidades permanecessem em sigilo absoluto. O meu era Garrincha. É que eu tenho as pernas tortas. Meu pai também tem. Caprichos da hereditariedade.
Com todo o aparato em mãos, partimos pelas ruas do bairro. No primeiro muro, tremi mais que vara verde. Não sabia o que escrever. Tasquei ali: Garrincha. Apesar da pouca eloquência, pude sentir o friozinho na barriga decorrente da estreia. Eu estava pichando um muro e, finalmente, sendo malandro. Imaginei que aquilo fosse me dar status, que faria com que as gurias me olhassem e suspirassem, comentassem que eu tinha quarenta e poucos quilos de charme, garbo e elegância. Toleimas. Aquela prática era feita em sigilo absoluto, e serviria somente para darmos boas risadas mais tarde.
Passado o primeiro momento de tensão, comecei a ficar mais à vontade nos muros seguintes. As mensagens variavam pouco, uma vez que eu não sabia fazer aquelas letras profissionais e todo o meu aprendizado resumia-se ao meu singelo apelido referente aos meus membros inferiores. Noves fora, enchi os muros de "Garrincha".
Numa daquelas, aconteceu o inesperado. Concentrado que estava enquanto praticava meu novo ofício num murinho virgem, ouvi um berro que dizia exatamente o que eu não esperava ouvir, pelo menos não na minha primeira noite:

- Corre, Garrincha!

Alguém nos havia descoberto! E eu, bem pateta, tinha esquecido de vigiar os arredores, um dos preceitos básicos do be-a-bá da pichação. Olhei para a esquina e vi que um vulto corria vorazmente em minha direção. Quando dei a largada, meus companheiros já estavam virados em pernas muitos metros à minha frente, aqueles safados! E como as desgraças, quando vêm, já vêm de braços dados, havia um detalhe sórdido: eu estava de chinelos. Não dava tempo de ficar de pés no chão!
Foi então que acordei dentro de mim uma espécie de Róbson Caetano adormecido, encarnei um recordista jamaicano, cruzado com a fêmea do guepardo mais veloz das savanas africanas e deitei o cabelo. Corri freneticamente, como aquelas zebras do Discovery Channel fogem das leoas famintas, mas não parecia ser suficiente! O magrão estava com tanta raiva que, a cada passo meu, ele parecia dar três. Grudei meus dedos na divisória dos chinelos, supliquei ajuda pro meu anjinho da guarda, que àquela hora da madrugada devia estar no terceiro sono e dei uma olhadinha para atrás. Antes não tivesse feito: o cara estava a uns 30 centímetros de mim. Pude vê-lo esticar a mão para pegar meu capuz , antevi a desgraça e a sumanta de laço que levaria se ele me capturasse. Nesse momento, escutei uma voz do além que me disse:

- Run, Antônio! RUN!

Foi por um triz, mas eu escapei. Até hoje não sei como consegui correr tão rápido usando chinelos. Arfando até os bofes, alcancei os guris, que assistiam à cena com os olhos esbugalhados, sem saber o que fariam se eu realmente fosse pego. É claro que fazíamos tudo aquilo ainda correndo muito, mas agora à procura de guarida n'algum canto escuro da bruma noturna. Desistindo da captura, o monstrengo ficou apenas gritando palavrões direcionados a nós, em especial a mim, que por uma titica de marreco não fora abalroado.
Fui bastante repreendido, essa que é a verdade. Disseram para que eu tomasse mais cuidado, que levasse os chinelos nas mãos e que, de preferência, corresse mais rápido. Muito fácil para quem tem pernas longas e fortes, ao contrário das minhas, que tinham mais pelos do que músculos. Meus cambitos eram tão finos que, se pintassem as pontas dos meus pés de vermelho, ficariam iguais a um palito de fósforo.
Bueno, mas passado o puxão de orelhas, seguimos em frente. Não satisfeitos com a dose de adrenalina já experimentada, partimos para o outro lado do bairro. Era uma região de muros grandes e altos, um verdadeiro paraíso. Vendo aquilo, os dois saíram em disparada, cada um em direção ao seu paredão escolhido, e desataram a rabiscar. Olhei para o lado e vi que me restava o muro claro de uma lavanderia. Nisso, uma centelha de inspiração iluminou meu cérebro e resolvi deixar uma mensagem deveras atrevida.
Eles terminaram a sua parte e desandaram a correr, quando perceberam que eu ainda estava escrevendo. Me chamaram com ferocidade, temendo outro flagra e, na pressa, sequer leram o que eu havia escrito. Alguns metros depois, já sob a segurança de alguma rua deserta, enfim paramos para tomar um fôlego, e eles finalmente perguntaram o que eu havia demorado tanto para escrever no muro da lavanderia. A resposta arrancou-lhes gargalhadas demoradas: "ROUPA SUJA SE LAVA EM CASA".
Foi, de fato, uma verdadeira jogada de marketing às avessas. Ganhei o respeito da galera naquele lance de genialidade, o qual eles trataram de contar para todos os que conheciam aquela atividade ilegal. Até hoje, há quem lembre daquele feito histórico, que ilustrou o muro da lavanderia durante uns dois anos, até que, talvez farto de perder clientes, o dono resolveu pintr de azul escuro e deixar minha mensagem apenas na posteridade da memória de quem contemplou aqueles dizeres inesquecíveis.
Depois daquilo, larguei aquela vida. Definitivamente, eu não possuía tino para aquele tipo de emoção tão forte. Um ano mais tarde, eu já era coordenador da Pastoral da Juventude do colégio e, em cada momento de oração, rogava a Deus para que perdoasse meus pecados, inclusive o da irreverente mensagem no muro da lavanderia que, ai de mim, quantos clientes deve ter perdido diante da reflexão que aquela frase propunha.
Hoje estou aqui, livre de preconcentos, assumindo esse segredo que rodou furtivamente entre as conversas mais reservadas de quem lembra daquele tempo, provando que eu, você, seu vizinho, todos temos histórias obscuras, ou feitos reprováveis cometidos em algum momento de nossas vidas. Eu nem devia estar contando isso, mas esse desejo incontido de escrever o que não devo ainda mora dentro de mim. Menos mal que agora vem tudo para o blog, e pelo menos não preciso mais correr tão rápido. Mesmo quando escrevo calçando chinelos.

4 comentários:

  1. Oi querido!! Amei o texto!! Sempre mto bem escrito fazendo a gente sentir que estava lá presenciando tdo!! Eu te agradeço pelas risadas que dei, pq hj realmente eu estava precisando.Beijo no coração. Ju

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  2. Primeiro a Cdf magrinha e agora, o dono da lavanderia! Cara... Logo vão te descobrir! rs

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  3. Maravilhoso! Conheço hoje um pixador ou melhor um ex-pixador bem criativo!

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  4. Passa um filme na minha cabeça...não sei pq!!! kkkkkk

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