Às avessas

Não encarem o que vou dizer a seguir como oportunismo ou hipocrisia. Pelo contrário, o farei com a mais profunda lhaneza: eu não gosto de Natal. Já faz algum tempo que essa data me desperta uma certa antipatia, tudo isso por diversos motivos que serão enumerados a seguir. Para se ter uma ideia, passei o último dia 25 de dezembro sozinho na fazenda, só a natureza e eu, casereando para meus avós enquanto a família engraxava os bigodes num suculento churrasco. Iniciativa minha. Queria ficar sozinho, e fiquei.
Nada tenho contra o Natal. Apenas deixei de nutrir os sentimentos nobres que acometem a população nessa época. Aliás, é a época em si que me causa certo desconforto. Certa vez, numa das últimas comemorações natalinas em que participei, pedi a palavra antes da janta e fiz um breve discurso. Em suma, disse que esperava que o clima ameno e fraterno daquela noite se propagasse durante os 364 dias seguintes até o próximo Natal. Que levássemos em conta que esse é o verdadeiro desejo de Deus para todos nós. Os integrantes da mesa se entreolharam, e pude perceber que nem todos haviam parado para pensar acerca de minha reflexão.
Bueno, mas o fato é que, de lá para cá, passei a descrer das comemorações natalinas. Prefiro praticar a fraternidade durante o ano inteiro. Nos últimos anos, por exemplo, não tenho mais passado as festas de fim de ano com minha família. Contudo, duvido que alguém visite mais meus avós no transcorrer do ano do que eu. Procuro praticar em doze meses o que tanta gente deixa para recordar em dezembro e, na tentativa de saldar a dívida, compra gracejos para a família e escreve palavras afáveis nos cartões temáticos.
Talvez alguns estranhem tamanho ranço de minha parte a dez dias do Natal, ainda mais por não ser característica marcante dos meus últimos textos. Todavia, devo confessar-lhes que, em certos momentos, perco a vontade de fazer rir. Minha fé na humanidade fica abalada quando sou bombardeado de notícias desestimulantes, situações tristes e um sem-número de reveses que permeiam o noticiário.
Hoje pela manhã, quando abri o jornal, li a recorrente notícia de uma mãe que abandonou quatro filhos pequenos em casa. Engoli em seco com um gole de café e virei a página. Então, deparei-me com o aumento de salário dos parlamentares, que, pasmem, foi aprovado na casa dos 61%. Um acinte, um achincalhe, um chiste do mais baixo calão para com os eleitores. Ainda atônito, entrei no carro e liguei o rádio. No comentário do folclórico Paulo Sant'Ana, um desabafo: uma babá de Caxias do Sul foi flagrada maltratando dois bebês pelas câmeras que os pais secretamente instalaram em casa. Antônio Carlos Macedo, âncora do programa, destacou também os maus tratos que sofrem os velhinhos, e foi debatido ainda o grande número de idosos que são internados em hospitais e asilos durante as festas de fim de ano ou veraneio nas praias, com o intuito de que não atrapalhem as férias da família.
Esse bombardeio de notícias ruins foi uma espécie de soco no estômago. Senti náuseas, um certo nojo da vida. Tentei, em vão, procurar motivos para comemorar o Natal. Nascimento de Cristo? Ora, isso é simbólico, Ele nasce todos os dias nos corações de quem crê. Que sentido nefasto ganha a troca de presentes, o marketing exacerbado, o consumismo animalesco e a fartura de comilança, enquanto tantos sofrem maus tratos que ferem o corpo e a alma.
Pergunto-me: que Natal terá um avô abandonado num asilo? Que presentes ganharão quatro filhos abandonados pela mãe? Que traumas causa esta babá desgraçada aos bebês que maltrata? E, principalmente, onde foi parar a vergonha na cara desses políticos sacripantas que nos tratam como imbecis?
Sinto-me nocauteado por tanta hipocrisia. É tanta sujeira, tanta tristeza... Na última terça-feira, fui cantar com o coral nos corredores de um hospital aqui de Novo Hamburgo. Recordei dos tempos de pastoral da juventude, quando repetíamos essa ação mensalmente e levávamos um alento aos pacientes, muitos deles também abandonados pelos familiares e necessitados de carinho. Vi várias meninas do grupo chorando, emocionadas com a reação das pessoas, muitas delas também indo às lágrimas enquanto contemplavam nosso canto. Enquanto isso, eu chorava por dentro e queria mais. Recordei as primeiras visitas que fiz nos tempos da pastoral, quando diziam o quão importante era tocar as pessoas, transmitir o carinho de alguma maneira física. Rompi as barreiras da música e confortei alguns velhinhos com um singelo aperto de mão e minhas estimas melhoras. Mal sabiam aquelas pessoas que o curado era eu, a quem eles, com seus olhares serenos e compassivos, aplacavam a amargura que por vezes dá de relho em minh'alma. Foi um misto de alento e dor. Mas, de qualquer forma, foi único.
Por essas e outras é que não simpatizo com o Natal. Se a tantos é a oportunidade de confraternizar e ver os entes queridos, a mim ainda causa a impressão de que algo está muito errado. E de que eu posso cada vez menos reagir contra toda essa sujeira que dilacera meu espírito. Este ano, mesmo que haja festa e mesa farta, no recôndito de meu ser, ainda estarei sozinho. Sabe Deus por quantos Natais isso perdurará.

2 comentários:

  1. Concordo contigo Antônio! Ahh a PJESC e os Amigos da Alegria, que falta fazem em minha vida, com toda a certeza foi a época em que mais aprendi, em que minha alma era tão feliz. Um beijão.

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