Ele mexeu com o cara errado

A história que vou contar hoje é um tanto, digamos, abrupta. Diria que não se enquadra no padrão família que meus relatos abordam, uma vez que contém violência física, formação de gangues e, por que não dizer, um pouco de sangue.
Não que eu goste de falar sobre isso, já que sempre fui ferrenho defensor do diálogo, um pacifista nato, que passa longe de perrengues que se resolvam indo às vias de fato. Isso da adolescência pra cá, naturalmente, já que quando criança eu bem que gostava de ver o couro comendo.
Certa vez, por exemplo, desferi uma taquarada no nariz de um vizinho no pátio da escola. Jorrou sangue a cântaros, e a diretora me pôs de castigo em pé, de frente para a parede, ao lado de uma estante na diretoria. Fiquei horas ali, estático feito uma esfinge. Certa ela, meliantes devem ser punidos, ora bolas. Minha mãe, que lecionava - e leciona até hoje - na mesma escola em que eu estudava, presenciou aquela cena e ficou estarrecida com a condenação que recebi. Coisas de mãe, já que aquele pequeno castigo alertou-me para os perigos que correm os agressores insólitos.
Apesar que, depois desse ocorrido, bem que andei me envolvendo n'algumas rusgas, todas no colégio. Nunca fui muito de desferir socos na cara, meus braços sempre foram esquálidos, então preferia usar de outras artimanhas. Dentadas, por exemplo. Houve um corajoso que ousou atentar contra a pureza de minha mãezinha, ao que tasquei uma mordida em sua perna. Isso foi na quinta série. No outro dia, lá estava a mãe do guri, esbravejando comigo na sala do disciplinador, enquanto mostrava o hematoma causado por meu ataque canino ao membro inferior de seu filho. Aqueles canalhas trancafiaram-me numa salinha pequena, nem defesa pude apresentar! Mas, tudo bem, eu não devia mesmo ter mordido com tanta força, ficou um roxo medonho.
De todo modo, foram poucas as vezes em que arranjei confusões desse calibre. Era uma briguinha aqui, uns empurrões dali, algum palavreado mais forte, mas nada que se pudesse dizer que fui um Bruce Lee das redondezas. Bem pelo contrário, até hoje não sei como se faz pra dar um soco em alguém. Não por falta de oportunidade, porque o fato a seguir bem que me propiciou tal treinamento.
Foi no fim de uma manhã qualquer, na parada de ônibus. Estes locais inóspitos, principalmente os que não abrangem o território escolar, eles são deveras perigosos. Você nunca estará a salvo numa parada de ônibus, acredite.
Eu estava parado no mesmo lugar habitual de todos os dias, acompanhado de amigos que aguardavam com parcimônia o transporte coletivo após uma exaustiva manhã de árduo aprendizado, tanto que o único amigo que estava junto ardia em febre. O pobre chegou a deitar a cabeça no colo, já que nosso ônibus era sempre o último a chegar. Esse gesto despertou a preocupação das gurias, que o paparicavam um bocado, enquanto eu permanecia parado no mesmo lugar observando a passagem dos alunos que rumavam para seus lares a pé.
Nisso, levei um empurrão contra o ombro que me tirou do eixo. Foi algo proposital, não tenho dúvidas. Logo contra mim, que àquelas alturas já havia abandonado o péssimo hábito de morder pernas e acertar narizes alheios com taquaradas. Fiquei indignado com aquilo, o cara seguiu andando como se nada tivesse acontecido e meu ombro doía. Por impulso, acabei praguejando alto demais. Lembro exatamente a palavra que falei, um xingamento típico das gírias que usávamos na época:

- ROSTÃO!

Não me perguntem o que significa "rostão". Meus amigos diziam, então eu dizia também. Vocês sabem, adolescentes são extremamente influenciáveis, é aquele papo de ser aceito na tribo e talicoisa. O fato é que falei alto demais, e o rostão ouviu. Voltou-se contra mim com sangue nos olhos, bufando com a empáfia típica dos mais fortes. E, de fato, ele era duas vezes maior do que eu, o que justificava tamanha coragem, aliada à presença da namoradinha, outro fator determinante para fazer um grau.

- O que foi que tu disse?

Pô, se escutou, pra que mandar repetir? Esses diálogos pré-combate são uma droga, principalmente quando o maior subjuga o menor. Gaguejei, olhei para meu amigo que, febril, nem percebeu o entrevero e, como um imbecil medroso, repeti bem baixinho:

- Rostão...

Foi o que bastou para o baita agigantar-se contra mim e pimba, deu-me uma cabeçada. Doeu pra cacete, acreditem, mas, pra minha sorte, foi só. Virou-se, glorioso, e partiu para seu lar com ar de vencedor. As gurias, boquiabertas com a cena, perguntavam por que eu não havia reagido, bradavam de raiva, ringiam os dentes e proferiam impropérios. Já eu, que não sou Davi, pra meter contra um Golias da vida, permaneci murcho feito um mulito na macega, rezando trocentos Creindeuspai para que o ônibus chegasse logo.
Porém, já diz o velho ditado, "quem tem amigos nunca está só". Minutos depois, vi descer a rua com a namorada um de meus amigos do texto anterior, daqueles que eu admirava. Este, ao contrário de mim, gostava duma peleia que ele só. Escrevia, não lia, o pau comia. E, por obra do acaso, meu agressor era justamente um de seus maiores desafetos no colégio.
Quando as gurias lhe relataram o ocorrido, vi a cólera brotar em seus olhos azuis, que tantas pinguanchas enfeitiçaram em Novo Hamburgo e, por que não dizer, Brasil a fora, quiçá no mundo. Ele ficou com mais raiva que eu, prometeu estraçalhar o pilantra, faria justiça com as próprias mãos, mostraria com quantos paus se faz uma canoa. Em suma, tava armado o banzé.
Como o desgraçado já andava longe àquela altura, o troco foi adiado para o dia seguinte. E deu-se que a história da agressão contra mim espalhou-se pela escola como um rastilho de pólvora, ao que, na hora do recreio, apresentava-se um exército de aproximadamente trinta voluntários para sovar o lombo do corajoso.
Recebi mais apoio que candidato em comício. Tive contato com uns caras que jamais enxergara na escola, todos inflamados pelo meu amigo que, de tão popular, aclamava as massas com facilidade, ainda mais se fosse pra surrar alguém. Chegou inclusive a informação de que dois amigos viriam do nosso bairro especialmente para executar o plano que, por sinal, seria executado na mesma hora em que todas as diferenças escolares se resolvem: a hora da saída.
Esperei apreensivo pelo último sinal. Estava curioso para saber o que aconteceria. Pessoalmente, nem queria mais a vingança, mas o instinto de ver o circo pegar fogo nessas horas é mais forte, e minha avidez por sangue brotou de tal maneira, que eu mais parecia um garnizé se adonando do terreiro. Era o meu momento de glória, uma gangue inteira em minha defesa. Senti-me o verdadeiro Al Capone.
Na hora da saída, uma retumbante surpresa: havia uns quarenta cabeças reunidos. Compreendi a dimensão do fato quando enxerguei, no meio do bolo, um cara portando um taco de beisebol. Cheguei a sentir pena do picadinho que fariam do rapaz. Sim, porque do jeito que andava a coisa, eu é que nem queria me meter.
Mas, como o controle da situação não estava em minhas mãos, puseram-me à frente do esquadrão e mandaram que eu abordasse meu algoz. Vendo que me faltava o essencial, a coragem, meu amigo tomou as rédeas da situação e chegou intimando o biltre, agora o mulito murcho da vez. Até havia uns amigos ao seu lado, contudo todos estavam bem avisados de que, se ousassem defendê-lo, sobraria sopapos pra eles também. Diante da fúria de quarenta, agiram todos como São Pedro e negaram conhecê-lo até mais que três vezes.
À beira de um massacre, o circo armado, todos do meu grupo começaram a recuar. Creio que a ficha caiu, afinal de contas, estávamos ainda na frente da escola, e quem criasse confusão certamente seria suspenso. Este medo, porém, não atingiu meu amigo, que chegou dando um tabefe nas ventas do safado e desencadeou um espetáculo de bordoadas. Lembram dos guris do bairro? Pois é, como não deviam nada à escola, foram os que mais bateram. Quanto mais o cara tentava se defender, mais socos choviam em cima dele.
Eu, pelo contrário, novamente assumi o papel de esfinge e não desferi um golpe sequer. Depois fui criticado, disseram que eu deveria ter dado ao menos um murro. Discordo. Meu regozijo foi justamente lavar as mãos e vê-lo acuado como um cão sarnento, desvencilhando-se, em vão, da metralhadora de tapas e pontapés que lhe acertavam.
Depois daquilo, nunca mais o vivente cruzou o meu caminho. Olhava-me de revesgueio durante os recreios e, se eu o encarava por mais que quinze segundos, desviava o olhar rapidamente. Venci o combate sem sujar as mãos, apelando apenas para o tráfico de influências exercido pelo meu amigo. Ah, como aquela sensação era boa! Ainda assim, nos dias subsequentes passei a escorar-me no muro para aguardar o ônibus, afinal de contas, é como diz aquele outro sábio ditado: cavalo de borracho sabe onde o bolicho dá sombra.

3 comentários:

  1. Eu estava chegando no fim do texto, orgulhoso de não ter tido nenhuma necessidade de olhar o dicionário, quando me deparei com a frase gauchesca. Puta merda! Foi quase, dessa vez.

    Mas na terceira lida eu acho que acabei entendendo.

    A história, aliás, foi ótima. Tu tem mesmo o dom de relatar os acontecimentos, cara.

    Abraço!

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  2. Fantástico!
    Digno de comentário....

    Noossa Guri, como o próprio nome do Blog mesmo diz, maas bá: "Que Momento!"

    História hilária, pra variar um pouquinho né?!

    Rindo como sempre....

    Abração

    Thasci Caiél

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  3. ha vc escreve demais
    fazia tempos não visitava aki.

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