"De certo por isso mesmo os meus destinos são dois..."

Gaúchos, todos nós - que nascemos no Rio Grande do Sul - somos. Porém, há momentos em que sinto falta de ser ainda mais gaúcho. Ou melhor, gaudério. Guasca. Bagual. Índio véio cuiudo dos pampas. Assim como diversas vezes sinto uma falta abrupta de escrever neste blog, uma espécie de querência literária que já me aguenta há mais de quinhentas postagens.
Bueno, o fato é que, como gaúcho de cidade, urbanizado por motivo de força maior, a maldita diáspora capitalista que defenestrou tanta gente do interior em busca de uma vida melhor na selva de pedra - minha amada mamãe inclusive - não é fácil cultivar a tradição à risca em virtude do ritmo frenético que se vive nessa terra de caras-pálidas. E, por mais que algum gaudério defensor dos costumes venha me dizer que o gauchismo está entranhado nas veias daquele que é verdadeiramente pampeano, replico dizendo que, mesmo o argumento sendo válido, sinto necessidade de praticar fisicamente a tradição.
Usualmente, procuro cultivar um linguajar que envolva adágios e expressões típicas, seja chamando alguém de 'vivente', puxando um 'buenas' n'alguma saudação, assoviando uma marca enquanto raciocino e sorvendo o máximo de sons que a natureza produz à minha volta, o que remete meu inconsciente diretamente à minha querida São Chico de Paula, onde ruminam minhas vaquinhas e cantam alegremente as carucacas, reduto absoluto do mais tangível que conheço de gauderiadas. 'Bah' não vale, que 'bah' é coisa de portoalegrense. 'Tchê' também não, que qualquer matungo usa 'tchê' no RS. Falo de algo mais profundo, lapidado.
Ainda assim, não basta. A vida é corrida demais, o tempo urge, ontem era dezembro, hoje é quase março, uma coisa de louco. Se o cara não está bem antenado, deixa passar muita coisa por baixo do nariz e, não raro, em sua maioria costumes que fazem um bem danado, seja qual for a sua tribo. No meu caso, a tradição baguala.
Quando isso ocorre, paro, respiro fundo e, atualmente, ponho para tocar Destinos, do Marenco. "Quem não sabe pra onde vai, não vai a lugar nenhum", diz a letra. É por isso que faço a pausa e repenso meus caminhos. Abro um pacote de erva, esquento uma chaleira d'água, cevo um mate. Visto minha bombacha mais surrada, fico uns dias sem me barbear, ostento um bigode miúdo, porém corajoso. Em dias mais rebeldes, deixo crescer a barba toda, ignoro a coceira, me permito ser rústico, guabiroba na essência pura da raça.
Ao som de uma cordeona, dou vazão aos meus sonhos de guri, penso o tempo todo nas minhas vacas, nas que já se foram, nas que virão. Repasso a conta da minha pequena, mas valente tropa. Mentalizo meu cusco, puxo um calendário e marco a próxima visita aos meus avós, projeto alguma lida em especial. Semana passada, quando lá estive, achei uma foice perdida num canto do galpão, passei a lima, dei uma afiada de revesgueio e grudei o muque numa erva-de-passarinho que fez morada no velho pé-de-carvalho que faz sombra à mangueira e atrapalhou um bocado a tiração de leite pela manhã, pois os ramos quase que arrastavam pelo chão, já que o vô não anda com tanto tempo e disposição pra dar conta do inço.
Talvez quem não viva essa vertente não consiga entender minha necessidade, meu vício. Contudo, quem conhece o valor que brota do campo, certamente sabe a falta que faz o cheiro da macega nas ventas. Queria ter posses o bastante para adornar toda a minha casa de toda a indumentária possível. Quem dera pudesse transformar a garagem numa estrebaria, jogar num canto os arreios, os pelegos, criar uma ovelha no pátio, quem sabe até uma égua rosilha. Ah, se pudesse acordar todos os dias pela manhã ao som da sinfonia de berros que fazem as vacas de leite, despertar ao som vivaz da cantiga do galo, e não a musiquinha mecânica e irritante do celular. Levantar cinco minutos antes do necessário, e não querer dez minutinhos a mais na cama quentinha antes de bater o ponto no escritório.
Sinto uma falta imensa de ser mais gaudério, de viver com maior intensidade toda essa riqueza que a cultura me deu ao longo da vida. Queria as mãos mais brotadas de calos, ao invés de tanta tecla, tanto mouse. Queria mais liberdade. Por enquanto, não dá, mas um dia há de se materializar. Enquanto isso, vou servir outro mate, que a bomba roncou...

1 comentário:

  1. Sabes meu patrício, que tenho pensado muito no que escreveste. A impressão que tenho é que em algum rastro do rincão eu me perdi e ali fiquei vagando a esmo, sem saber muito da onde vim nem para onde vou.
    Contudo, tenho sentido nos últimos dias renascer a chama campeira que trago junto comigo, o que sempre me fez feliz.

    No mais continuo batendo na marca: quem tem o gauchismo na essência jamais perde a identidade!
    Quem anda perdido um dia sempre se encontra, a gauderiar campo afora.
    Por falar em Destinos, este quer que eu cante e ao cantar eu me compreendo. A querência eu levo dentro e o resto toco por diante...

    Belo texto.
    Um forte abraço!

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