Trepidante

Eu sei, eu sei, ando relapso uma barbaridade com meus escritos. Negligente até. Ocorre que 2011 é um ano atípico, onde as novidades vêm ocorrendo de maneira acelerada, de modo que faltaM-me tempo e disposição suficientes para transcrevê-los por aqui.
A história de hoje, por exemplo, ocorreu há quase 15 dias. Mas, de tão absurda, não poderia deixar de ser registrada.

Foi num jogo do Calixto, time em que jogo aos sábados e do qual, com muita honra, sou o presidente neste ano. Exercendo a distinta função, evito faltar aos jogos, salvo por motivo de força maior. Extração de dentes, por exemplo, não é algo que me faça permanecer trancafiado em casa enquanto meus parceiros desfilam seu futebol áureo-negro defendendo as cores de nosso escrete.
E, justamente naquele sábado, eu convalescia da segunda extração de sisos em dois meses. A cirurgia fora na sexta-feira, o que significa dizer que o gostinho do sangue ainda estava abundante em meu paladar, jorrando vez ou outra da cavidade lunar onde outrora acomodavam-se dois dentes do juízo, os quais, uma vez arrancados, levaram consigo um pouco de minhas faculdades mentais. Não se pode ter muita sanidade para sair de casa com as bochechas do Fofão para assistir a uma partida de futebol.
Ainda assim, eu lá estava, discursando no vestiário, mobilizando o time, advindo de três derrotas, rumo à redentora vitória que todos almejávamos. Queria ver meus amigos vencerem, queria vencer junto, queria gritar enlouquecidamente a cada gol. Aliás, gritar não, que isso poderia arrebentar os pontos da cirurgia... Bueno, prometo que outro dia conto em detalhes as peripécias às quais minha mãe e minha avó foram submetidas nessa saga de extrair quatro dentes. Por enquanto, vamos focar no jogo.
A partida começou modorrenta como uma quarta-feira de cinzas. Durante os primeiros minutos as equipes costumam estudar o adversário, até mesmo nas peladas de sábado. Jogando em casa, porém, a pressão pela vitória levou o Calixto a tomar a iniciativa. Afinal de contas, mais de cinco torcedores, eu disse CINCO, blateravam efusivamente à beira da grade que circunda o campo na esperança do triunfo.
Deu certo. Em pouco tempo, abrimos dois a zero e, oxalá, o solzinho que brilhava timidamente parecia acenar com o retorno dos tempos de vacas gordas. A partir disso, o melhor a fazer era manter a calma, tocar a bola com parcimônia e administrar o placar, aguardando as brechas para atacar e desferir golpes de misericórdia no adversário, que já cambaleava antes da metade do primeiro tempo, atordoado com a súbita desvantagem.
Só que é aquela história que eu sempre digo, quando Deus quer, até égua véia nega estribo. Bastaram três investidas dos caras, três bolas altas na área e, babaus, três gols de cabeça do mesmo rapaz forte, repleto de melanina e muita truculência. Viraram o jogo, para meu desespero. Não cheguei a ver o primeiro gol dos caras. Quando saiu o segundo, não aguentei e fui pra casamata. No terceiro, que se danassem os sisos, eu já chutava a grade furiosamente.
Para piorar a situação, duas expulsões afetaram nosso time. O árbitro, figura folclórica que costuma dar o que falar nos embates de fim-de-semana, mandou nosso lateral-esquerdo descansar após uma entrada dura por trás e, logo após, apresentou o cartão vermelho ao lateral-direito, que supostamente o teria chamado por um sinônimo nada mimoso da palavra "estrume". A sensibilidade de certos juízes de futebol me comove.
No intervalo do jogo, eis que surgiu a primeira figura mitológica para mudar a história dramática daquela tarde. Meu pai. Ele havia sido apresentado no vestiário como novo integrante da comissão técnica, e o combinado era que assistisse a duas partidas antes de começar a atuar à beira do campo. A combinação, porém, durou parcos 45 minutos. Quem sai aos seus não degenera. Quando todos parecíamos atordoados com a quarta derrota seguida, vieram suas palavras firmes de motivação, frases de ordem, típicas de quem já troteou com garbo e elegância pelos gramados da região, despertando em muitos que o viram jogar a curiosidade em saber por que não fora profissional, tamanha a sua habilidade em tontear os beques dos anos 80 e 90.
O fato é que a mijada não funcionou muito bem, pelo menos de imediato. Numa bobeira da zaga, nosso beque William permitiu que o quique da bola o enganasse e, alvissareiro, o supracitado rapaz da melalina em excesso cravou o quarto gol do adversário. O cenário começava a ficar vexatório para o nosso lado. Vendo o quadro da dor que se estampava, o árbitro, filho de uma senhora de muito respeito, mas que provavelmente exerceu o meretrício n'algum lugar do passado, resolveu zombar de nossa maré de azar e marcou um pênalti a favor dos caras. Levar o quinto gol significaria uma verdadeira hecatombe futebolística em nossa moral.
Aqui, neste novo parágrafo, aparece a segunda e decisiva personagem do jogo. Amarelo, nosso goleiro. Dotado deste singelo apelido que causa a curiosidade acerca de seu surgimento em todas as pessoas que o conhecem, nosso guarda-metas ficou enfurecido. Ainda assim, acatou a decisão e concentrou-se para defender o tiro livre direto. Se levássemos o cinco a dois, a situação ficaria periclitante. Meu siso latejava insistentemente, como se quisesse nascer outra vez no buraco da cirurgia. O atacante correu para a bola, e todas as quinze pessoas que assistiam à partida estavam deveras apreensivas.
Mas a bola, safada como uma vaca matreira, bateu na trave e saiu. Pulávamos efusivamente, comemorávamos a chance que os deuses do futebol nos concediam, quando algo totalmente inesperado aconteceu.
Tomado por um transtorno obsessivo-compulsivo, misturado com a incorporação do espírito de Haggar, o Terrível, Amarelo ergueu-se do chão de um só pulo e, tal qual nosso lateral-direito, bradou contra o juiz outro sinônimo nada hospitaleiro da palavra "esterco", ao que o ofendido apresentou-lhe prontamente o cartão vermelho.
Mesmo de longe, vi a fúria tomar conta de nosso arqueiro. Foi uma cena dantesca, algo entre o Coisa e Ânderson Silva. Ele partiu com toda sua protuberância corpórea para cima do juiz e desferiu-lhe um pontapé de perna direita que, macacos me mordam, faria Osama Bin Laden dispensar qualquer aviãozinho barato para derrubar as torres gêmeas.
O pobre árbitro, atordoado, correu para o portão em busca de guarida, enquanto mais ou menos quinze pessoas tentavam segurar um Amarelo completamente desfigurado, tamanha a raiva que esbravejava. Jurei que o juizinho viraria salame. Aguardei alguns instantes e, vendo que a poeira baixava lentamente, decidi por minha cirurgia à prova indo em direção ao nosso goleiro. Tremendo de medo, com algo insólito correndo perna a baixo, pus a mão no ombro do rapaz, que bufava feito um rinoceronte desgovernado e, dotado de toda didática que Deus me deu para lidar com pessoas irritadiças, convidei-o gentilmente para que saíssemos do gramado, afinal, cartão vermelho dado é cartão vermelho consumado.
Aparentando certa resistência, ele assentiu ao meu convite, talvez em nome de nossa amizade longíncua. Ainda assim, ao sair no portão, apontou o dedo indicador, que mais parecia uma murcilha de Garibaldi, na direção do esquálido árbitro, a essa altura da cor de farinha de trigo e esbravejou:

- A tua sorte que eu não acertei direito, SEU MERDA! - não pude colocar outro sinônimo agora, senão perderia o efeito do xingamento.

Passado o entrevero, a dura realidade é que havíamos perdido nosso goleiro. Num gesto de sacrifício, William, zagueiro mártir, talvez querendo redimir-se da papagaiada que cometera no quarto gol, pegou as luvas e vestiu o manto sagrado de nosso colega kung fu, que àquela altura acalmava os ânimos tomando uma acalentadora chuveirada no vestiário. Enquanto isso, o placar continuava 4 a 2 e a partida era retomada, uma vez que o juiz sobreviveu à tentativa de homicídio claramente doloso.
No entanto, é justo que se diga que a expulsão do Amarelo não foi em vão. Vendo aquele cenário catastrófico, o time foi incendiado por uma abrupta vontade de vencer que passou a converter-se em gols. À base de relho, facão e cachorro, fizemos o terceiro e o quarto, buscando um empate até então inimaginável e dando mostras de que virar a partida seria um milagre quase que palpável.
Do lado de fora do campo, já extasiado por conseguirmos lavar a honra através do gol de empate, assisti a uma cena que ficou marcada, tanto no meu coração, quanto na minha boca. O quinto gol. Numa jogada confusa, furtiva e macanuda, Fazano, nosso centroavante artilheiro, matou a redonda no peito e desferiu o chute que me fez perder a linha. Cinco a quatro pra gente!
Foi um tal de gente invadindo o campo, uma cena épica, berros retumbantes ecoaram em todo o bairro. Vi blusas sendo atiradas aos céus, meu pai levando as mãos à cabeça, incrédulo com tamanha façanha. Esquecendo-me totalmente da minha recuperação dentária, corri como um maratonista para abraçar o autor do gol, como deve fazer todo presidente que se preze, uma vez que a diretoria vive de vitórias, de conquistas, de momentos extasiantes como um quinto gol maravilhoso que vira uma partida que estava perdida.
Dali até o final do jogo, a catimba comeu solta. Fizemos cerca de catorze substituições em 10 minutos, o tempo parecia não passar e aquele salafrário do juiz queria jogo. Até meu pai invadiu o campo, armou um banzé dos diabos, xingou Deus e o mundo, uma barbaridade. Adivinhem? Lá fui eu, outra vez, sisos à beira do caos, puxar meu pai pelo braço pra afastar o perigo. Foi até mais difícil que conter o Amarelo, mas meu espírito pacifista prevaleceu. Quarenta e sete, quarenta e oito, sei lá quantos minutos aquele discípulo de Márcio Chagas da Silva deu, mas a partida não terminava. Começava a escurecer no céu de Novo Hamburgo. Eram jogados talvez cinquenta e três minutos do segundo tempo quando, no último ataque do adversário, um bate rebate animal aconteceu em nossa área, até que alguém conseguiu chutar para o gol. Num último gesto de desespero, com nosso goleiro interino já vencido, Cléo, volante 'copero y peleador', deu uma ponte e bateu com a mão na bola antes que entrasse no gol. Ainda assim, ela entrou.
Os caras saíram gritando mais que duelo de siriema em dia de verão. Parecia uma carneação de porcos em massa. Amarelo, à beira do campo, só falava em surrar o juiz. Mas, para espanto geral de todos os presentes - a essa altura muita gente da comunidade já se aproximara para acompanhar o fim daquele acontecimento histórico - a mão do árbitro apontava... pênalti!
Olha, uma coisa devo dizer: aquele cara não tinha medo da morte. Imaginem, no apagar das luzes, a bola entrou mesmo com o toque de mão, a regra é clara, diria Arnaldo! Gol legítimo! Mas, não, ele permaneceu irredutível, era pênalti e não teria choro. Vieram todos pra cima dele, gregos e troianos, todo mundo berrando ao mesmo tempo, uma várzea...
Pra encurtar o relato, que já tá mais comprido que putiada de gago, o cara dessa vez foi lá, bateu o pênalti, fez o gol, empatou o jogo e ficou nisso. Cinco a cinco, muitos gritos, e acabou todo mundo se abraçando, vivendo todos felizes para sempre. De qualquer forma, a superação daquele placar adverso ficou marcada na história do Calixto, esse time que me tira dos eixos, que me faz sangrar literalmente e do qual sou presidente com muito orgulho.
Bueno, mas amanhã é sábado e tem mais. Quem sabe que tipo de história pode surgir, né? Pelo menos estarei em campo, apesar de não querer protagonizar nenhum texto digno de publicar por aqui.

Só tenho a impressão de que aquele juiz não apita jogo nosso nunca mais...

0 comentários:

Postar um comentário

<< >>