Ele mora em uma sensação

Sempre fui um guri sonhador. Sempre.

As pessoas dizem que minha imaginação é fértil, que sou criativo e talicoisa. Mal sabem que esta habilidade - se é que assim pode ser chamada - requer anos de prática. Quase todos da minha curta vida até aqui, por sinal. Desde que me conheço por piá franzino, sonho acordado. A cada gibi, cada brincadeira na rua, programa de televisão ou algo que o valha, tudo sempre serviu para ser aumentado, tomar proporções fantasiosas e me inserir no contexto do inimaginável.
A primeira das lembranças que tenho é das fazendinhas que montava em qualquer lugar da casa. Reproduzia todo o serviço do meu avô montando mangueiras, galpões, trançava laços com linha de costura, construía pequenos cochos e colocava sal de verdade; pegava potes de margarina e banhava o gado, a carrapaticida era feita à base de canela em pó; vacinava o lote com agulhas fictícias e vidros vazios dos remédios que meu avô usava no gado.
Ali, naquela fazendinha, passava horas imerso num mundo de brinquedo. Era bem mais do que uma distração infantil: era minha própria fazenda, a propriedade rural sobre a qual eu decidia os rumos. Imitava até mesmo os horários do vô. Terminávamos de tirar o leite das vacas, e eu vinha correndo para dentro de casa ordenhar minhas vaquinhas de plástico, com direito a laçá-las, soltar o terneiro certo para o apojo (procurem no Google) e seguir a mesma ordem todos os dias. O mesmo ocorria na hora de reunir o gado durante a tarde, tudo o que era feito na realidade, eu reproduzia do meu jeito na minha brincadeira.

Quando voltava para Novo Hamburgo, a parafernalha toda vinha junto. Aboletava a fazendinha n'algum canto da casa e, tendo decorado os horários durante as férias, seguia dando continuidade à jornada ao chegar da escola. Se a mãe desmontava o brinquedo para limpar a casa, dava escândalo, sapateava de brabo. Era ali, naquela fazendinha, que sentia a felicidade plena e ninguém tinha autorização para invadir meu pequeno latifúndio.
Não sei ao certo quando abandonei este hábito, mas asseguro que já flertava com as raparigas na escola e ainda encontrava tempo para manejar a bicharada de plástico. Se alguma guria soubesse daquilo, certamente não levaria minhas qualidades a sério, então sempre guardei o segredo a sete chaves. Só a família sabia.

Passou, infelizmente, e todo o meu rebanho foi literalmente para o saco. Agora está tudo guardado numa sacola empoeirada... Ainda assim, as lembranças jamais abandonaram minha imaginação. Com o passar do tempo, fui ganhando cancha no campo de verdade, aprendendo mais e mais da lida, o vô concedendo liberdades e confiando tarefas a mim. Aprendi a camperear, vigiar banhados, curar bicheiras, vacinar e amansar os xucros. O brinquedo, enfim, virou vocação.
Desde então, vivo dividido entre o campo e a cidade. Ora, a urbanização é parte de outros pilares da minha vida, isto é inegável. Amigos, futebol, video game, internet e a própria vida profissional, estes fatores acabaram engrossando minhas raízes também na selva de pedra. O campo sempre foi um ideal distante, um sonho a ser realizado, uma sede eterna saciada a poucos goles em finais de semana, feriados, férias coletivas curtas.

Todavia, surgiu um entretanto. Tantos anos depois, o sonho de guri brilhou ao fim do túnel. Talvez ainda distante, mas palpável. As pessoas certas entenderam que essa fantasia toda tinha seu quê de verdade e, mais do que isso, tratava-se do meu combustível fóssil para a realização plena.
Vem por aí uma fase especial, marcante, única. Uma sensação perene, tão inexplicável quanto a necessidade do coração em seguir batendo o tempo todo. O sentimento que bombeia alívio às veias e artérias, minha endorfina própria. E o que é melhor: une as pontas do todo. É o elo de ligação perfeito, o pingo que faltava no I. Mesmo que o momento não seja conclusivo, a única constatação que consigo fazer com lucidez nessa hora é a de que morei a minha vida inteira numa incrível sensação. Valeu a pena.


- Minha participação no Desafio Blogueiro.

2 comentários:

  1. Mas que momento!
    Tenho só a desejar tudo de incrível pra esse pingo no I!
    Que se sinta realizado nesta sensação, e que dê tudo certo!

    ResponderExcluir
  2. Que saudade absurda de te ler, meu querido!
    Mas que momento... =)

    ResponderExcluir

<< >>