Como nascem as quadrilhas


Sábado fui visitar um amigo meu que adentrou o time dos papais recentemente. Seu pequeno rebento nasceu há pouco mais de quinze dias e fomos, a Dani e eu, conhecer o garoto com a avidez de quem percebe que se aproxima cada vez mais deste momento mágico. A cada criança que nasce, posso ver brilharem os olhos de minha esposa e sinto que o surgimento do nosso zigoto está mais próximo do que parece.
De fato, o bebê é tão lindo quanto transmitem as fotos do Facebook. Não condeno a atitude dos pais em dividir essa alegria com o mundo, os próprios hospitais divulgam o rosto inchado do recém-nascido em seus sites, mas confesso que não vejo como uma atitude adequada. Penso que é uma exposição que poderia ser evitada, mas respeito quem quer sorrir e mostrar para o mundo o quanto é bom gerar um filho.
Bueno, mas o fato é que os danados crescem, vão para a escola e adquirem companhias, inúmeras, diversas e quase que incontroláveis. É preciso levar a criança na rédea curta para evitar certos desvios de conduta, ainda mais nesses tempos mal definidos de internet à revelia e bundalelê na televisão. No meu tempo não havia tudo isso, e posso afirmar que andei várias vezes meio teatino pelas ruas da cidade aprontando umas e outras.

Recordo, por exemplo, uma passagem em que infringi a lei dos homens com a parceria de alguns colegas.

Era o tempo de oitava série, aquela idade em que as gurias já suspiravam pelos marmanjos do extinto Segundo Grau, enquanto que nós guris ainda descobríamos muitas funções diferentes para os membros superiores. Naquela época, era comum andar na rua tocando campainhas alheias e depois picar a mula correndo o mais rápido possível fugindo do campo de visão do dono da casa. Tive colegas que atingiram recordes olímpicos nesse entremente.
As traquinagens eram em sua maioria leves, inofensivas e bastante engraçadas. Trotes telefônicos no tempo dos falecidos orelhões, ainda que alguns resistam impávidos à ação do tempo. Aquele período em que a música da chamada a cobrar era um dos hits mais ouvidos nas residências da região, uma vez que o SMS ainda engatinhava nos tijolos da Motorola que só os abastados possuíam. E, mesmo assim, eram artigo de uso adulto. Criança não chegava nem perto de celular, deusolivre! Bem diferente de agora, onde a molecada já usa dois chips e xinga muito no Twitter.
Certa feita, porém, passamos dos limites numa aprazível tarde de sábado. Marcamos uma partida amistosa de futebol e alugamos o horário num ginásio da cidade. A brincadeira era entre nós mesmos, dividimos cinco para cada lado e divertimo-nos até dizer chega. Fazia um calor desértico em Novo Hamburgo e, por ser grama sintética, o local ganhou ares de estufa. Eu ainda não tinha o corpo coberto por pelos, mas já suava a cântaros feito uma cachoeira.
Terminada a partida, os guris foram descansar as pernas, beber refrigerante e recolher o dinheiro que cada um levara para contribuir com o aluguel da quadra. Enquanto isso, fiquei dentro da cancha batendo bola com um amigo tão viciado em futebol quanto eu, que também não estava incomodado com o suor empapando-lhe a camiseta. Permanecemos ali, naquela disputa de chute a chute por mais meia hora, até que os músculos atingiram o nível de exaustão suficiente para levar-nos à pausa. Quando saímos do campo de jogo, notei que os outros riam baixinho e cochichavam na mesa aonde bebiam um guaraná bem gelado. Sedentos por alguns goles, corremos para perto deles, mas não tivemos oportunidade de encher nossos copos: a conversa do momento era mais séria do que parecia.
Ocorre que, na junção dos trocados, contabilizando a compra do refri 2 litros e a inadimplência de dois ou três que não cumpriram com o racha para o aluguel, a soma total de que dispúnhamos não cobria o valor a ser pago. Como todos tínhamos entre treze e catorze anos, os níqueis eram contados e escassos, o que significa dizer que estávamos num mato sem cachorro. Como fazer para explicar ao dono do estabelecimento que faltara dinheiro?
Se você raciocinou corretamente, sabe que bastaria ligar para algum pai ou mãe e barganhar os caraminguás faltantes para quitar a dívida. No entanto, o instinto maquiavélico tomou conta dos guris naquele instante e, sem que nós dois pudéssemos sequer sinalizar com a solução, o plano já estava traçado. Fugiríamos. Daríamos um golpe no tiozinho. E quem não aderisse à quadrilha levaria uns belos cascudos. Bastava caminharmos disfarçadamente até a porta principal e, uma vez com os pés na rua, deitaríamos o cabelo rumo à clandestinidade, carimbando nossa inserção no mundo da pilantragem.
Assim decidido, levantaram e partiram para a execução. Uns de mão no bolso, outros olhando para o céu, assoviando, valia tudo para disfarçar. Olhei para o meu amigo apavorado e, sem muita opção, seguimos a diáspora. Dez pequenos infratores esgueirando-se rumo à porta como quem joga pedrinhas em qualquer lago numa tarde de piquenique. Quando o primeiro pé atingiu a rua, ouviu-se o estouro da tropa. Era tarde demais, o crime estava consumado. Corremos feito um bando de zebras fugindo das leoas famintas n'algum canto da África setentrional. Alguns logo acusaram o cansaço, bufavam, mas ainda assim corriam. Sem sentir as pernas e por puro instinto de quem luta pela sobrevivência, meu colega de chute a chute e eu seguíamos o pelotão gastando as últimas gotas de suor que o corpo produzia correndo como se não houvesse amanhã.
Porém, a situação que já era periclitante conseguiu piorar. Ao olhar para trás, alguém enxegou um giraflex: era o carro da polícia dobrando a esquina. Desespero, delírio e demência tomaram conta de todos, e até mesmo o gordinho do grupo virou um fundista naquela hora de pavor. Uma voz no meio do bando gritou "SEPAREM-SE", ao que duplas formaram-se rapidamente e tomaram direções distintas na esperança de confundir as autoridades.
Por sorte, tomamos o caminho contrário ao que os policiais seguiram. Aliás, a viatura nem vinha atrás da gente coisa nenhuma, devia ser só uma ronda corriqueira. Por azar, pegamos o caminho mais longo até nossa casa. Meu amigo e eu, com a sede de mil camelos no Saara, beirando a desidratação, seguimos a esmo na busca por um gole d'água. Foi incrível como a cidade tornou-se absurdamente grande naquele momento, com a distância do meu bairro parecendo uma peregrinação rumo a Meca feita por muçulmanos saídos de Morro Reuter. Era a falta d'água que começava a causar alucinações pregando peças em nossos olhos juvenis.
Depois de assegurarmos que estávamos a uma boa distância da caçada policial, deixamos de lado o status de foragidos e focamos o que restava de nossas forças na busca incessante por água. Fiscalizávamos todos os pátios em busca de uma torneira que desse fim à nossa sofreguidão, mas estava difícil de obter algum sucesso. Suados, sem um puto tostão nos bolsos e entregues à própria sorte, caminhamos mais algumas quadras até que finalmente surgiu no horizonte a figura mágica do oásis: uma lancheria.
A ausência de dinheiro era um problema, não havia como comprarmos um refrigerante, ou mesmo uma garrafa de água mineral. Ficar devendo também estava totalmente fora de cogitação uma vez que a recente fuga ainda pulsava de maneira vívida em nossos corações. Fiz, então, o que toda pessoa certamente já quis fazer algum dia em tom de chacota ao adentrar um estabelecimento comercial do ramo alimentício: com a humildade de um camponês, pedi um pouco de água da torneira.
A dona da lancheria não pôde deixar de analisar o nosso estado por alguns segundos. Maltrapilhos, sujos e certamente exalando odores  de suor nada aprazíveis, considerar-nos meninos de rua não seria nenhum exagero naquele momento. Compadecida, pegou um copo plástico e serviu água para nosso deleite. Bebemos três copos cada um com o despudor de quem dependia daquele líquido para continuar a busca pela libertação. A cada novo pedido de mais um copo, a expressão de pena fora dando lugar à uma certa impaciência da tia, ao que resolvemos seguir a caminhada mesmo sem matarmos toda a sede que consumia nossas almas antes que fôssemos gentilmente convidados a nos retirar.
Enfrentamos a longa jornada e chegamos exauridos ao meu bairro, porém aliviados por estarmos a salvo da internação em qualquer instituição para menores infratores. Quando chegamos na rua da minha casa, deparamo-nos com dois dos artífices da fuga do ginásio rindo com tranquilidade na esquina da residência de um deles. Sem forças para sequer relatarmos a mendicância a qual fôramos submetidos, apenas recebemos de volta a parte em dinheiro que tínhamos dado para a vaquinha e partimos para nossos lares rumo ao merecido descanso, porém não livres de um certo peso na consciência.
Por fim, o pior e mais óbvio. Tudo aquilo não adiantou de nada. É sério. Ao chegarmos na escola na segunda-feira, o colega que tinha reservado o horário no ginásio cobrou novamente o valor a ser pago por todos e relatou o ocorrido. Quando ele chegou em casa, o tiozinho já havia contatado sua mãe reclamando o não pagamento de nossa dívida, o que rendeu uma carraspana das brabas ao guri e muitas semanas de castigo. Ora, se ele tinha dado o telefone da própria casa para contato, era mais do que natural que a primeira medida a ser tomada pelo dono do ginásio fosse ligar para cobrar o aluguel. Tive vontade de atacar a jugular daquele sacripanta ao recordar a humilhação de suplicar por água na lancheria em pleno centro da cidade, mas controlei meus instintos. Preferi pagar a minha parte e sair com a sensação de dever cumprido. De certa forma, fiquei até orgulhoso pelo plano ter dado errado, pondo fim à nossa quadrilha. Daquele dia em diante, nunca mais saí de casa com o dinheiro contado para pagar o futebol. Nessas horas, é melhor desembolsar uns trocados a mais, do que depender das próprias pernas para salvar a pele. E, por via das dúvidas, além de não retornar àquela quadra nos dez anos seguintes, sempre abaixo a cabeça quando cruzo uma viatura policial. É a sede que ainda me causa calafrios.

3 comentários:

  1. Os tempos inconsequentes da infância... Os planos mirabolantes fadados ao fracasso... Nostalgia pura. Boas recordações!

    ResponderExcluir
  2. Quanta história hein?!
    E aqui, como nascem as quadrilhas pode até ser, mas o "criminoso" nascem lá nas canetinhas. hahaha
    Brincadeira!

    E óh, que o zigoto de vocês esteja próximo de vir sorrir pra este mundão! :)

    ResponderExcluir
  3. Cada vez que leio alguma arte tua, fico pensando quão mais tem de histórias pra contar. Se teu filho aprontar 10% do que tu aprontava, tais no lucro Ton!

    Beijoquinhas.

    ResponderExcluir

<< >>