O cheiro do pastel

Voltar para a faculdade após tanto tempo seu estudar efetivamente tem sido um aprendizado diário. Tive de me livrar de uma série de amarras dogmáticas, repensar meu estilo de vida e, o melhor de tudo, voltei a acreditar que é possível correr atrás de um sonho da infância. A esta altura do campeonato eu já dava como terminada a sobrevivência daquele guri franzino que queria ser veterinário, mas, oxalá, ele está de volta. Firme que nem prego em polenta.
O dia-a-dia em si é até bem básico. Equinos, bovinos, suínos e dimorfismo sexual são assuntos bastantes frequentes, de modo que muitas vezes sinto como se estivesse no paraíso onde todos falam a mesma língua e caminham para o mesmo horizonte, ainda que isso seja uma retumbante mentira. Como sou um pouco mais velho que a maioria dos colegas, também tem sido um belo exercício de rejuvenescimento e hoje, surpreendentemente, eu recomendaria a volta aos estudos para todas as pessoas que buscam novidades para a sua vida.
Uma das coisas que voltei a fazer nesta vida acadêmica é usar o transporte público. Até tentei o deslocamento de carro durante algumas semanas, mas o caos da BR-116 e minha notável impaciência no trânsito me fizeram crer que meus cabelos branqueariam menos caso eu resolvesse contribuir com o meio ambiente e diminuir minha parcela de dióxido de carbono lançado na atmosfera.
O metrô é um dos lugares mais pitorescos que pode existir. Juro que já encontrei sósias de Pepeu Gomes, Sílvio Luiz e até mesmo do Inspetor Bugiganga nas curtas viagens até Canoas, mas o mais curioso é analisar o comportamento das pessoas aglomerando-se feito gnus em busca da sobrevivência nas savanas africanas. Outro dia, numa estação qualquer, em cinco segundos adentrou o vagão uma turma de mais ou menos trinta crianças na faixa dos 10 anos, o que fez o barulho multiplicar-se por quinhentos e me deu a legítima impressão de estar dentro de uma lechiguana em meio aos marimbondos mais raivosos do universo. Fiquei encolhido num canto, murcho feito um mulito na macega, rezando Padre-Nossos para que a minha estação chegasse logo antes que eu fosse devorado por aqueles moleques sedentos por folia.
Bem, mas muito melhor que o trem é o ônibus, o glorioso busão. É nele que a gente encontra a figura bucólica do motorista, com seu cobrador devidamente sentado e contando moedinhas, orientando o trânsito no corredor para lotar adequadamente o veículo e, é claro, aquelas situações constrangedoras que só um velho transporte coletivo pode fazer você enfrentar.
Como a manhã em que sentou-se ao meu lado uma distinta senhora, por exemplo. Meu sono era evidente e o estofado do ônibus antigo parecia convidativo a uma curta soneca até chegar ao campus. De repente, eis que surgiu um embrulho nas mãos da minha colega de banco. Suas mãos foram abrindo aquele pacote delicadamente, como quem desfruta de uma sinfonia de Beethoven, enquanto eu, sonolento, dormia com um olho fechado e outro aberto já com uma certa curiosidade acerca do conteúdo do embrulho.
Sem que eu pudesse ao menos tentar um gesto de defesa, surgiu um vigoroso pastel entre aquelas escamas de papel, e com ele um cheiro dilacerador de carne gordurosa passou a esbofetear minhas narinas com a força de duzentos rinocerontes. Quis pular a janela e gritar pela SAMU, mas não pude conter meu desespero quando ela aproximou seus dentes daquele inóspito lanche e tascou-lhe a primeira dentada, abrindo um orifício que aumentou ainda mais o potencial fedorento daquele budum desgraçado que tomou conta de minh'alma até a sétima geração que minha descendência venha a gerar.
Antes que eu ateasse fogo a tudo e a todos tomado pela raiva que estava, lá na porta da frente uma cena ainda mais intrigante acontecia. Entrou um sujeito visivelmente embriagado e maltrapilho, pediu licença a uma idosa e acomodou seus pertences por ali mesmo, logo atrás do motorista. A senhorinha, que o que tinha de velha também tinha de ardilosa, não quis arriscar suas pelancas e mudou de banco, sentando-se ao lado de um imponente ancião que usava um boné de posto de gasolina e estava acomodado à frente do cobrador.
Bueno, o cobrador. Falemos dele. Diante daquela cena desconfortável, como representante da moral e dos bons costumes dentro do ônibus, perguntou ao indivíduo aonde ele pretendia ir. Antes que o pé-de-cana respondesse, não pude deixar de notar a semelhança física do cobrador com o cantor sertanejo Teodoro, da dupla Teodoro e Sampaio. Só que de óculos. Mas era igualzinho.

Separados pela voz: Teodoro e o cobrador de ônibus.
O vivente, alto do trago e talvez apenas querendo ir para o recôndito de seu lar curar o porre, respondeu que ia para o centro da cidade. Nisso, Teodoro (vamos chamar o cobrador assim para dar um ar de intimidade) argumentou que aquela linha não iria para tal destino, convidando o bebum a sair do ônibus. Porém, o que tinha de bêbado o rapaz não tinha de burro, e logo desconversou dizendo que iria para outro lugar. E ficaram naquele conversê, dando início a uma pequena altercação entre os presentes. A cena era dantesca: as velhinhas nos bancos da frente abanando os narizes pelo cheiro da cachaça, e eu lá no fundo sufocado pelo odor do pastel.
Nisso levanta o senhor do boné do posto e tira do bolso da camisa uma espécie de distintivo. Não posso afirmar com propriedade o que era, devido à distância e também por minhas faculdades mentais estarem cada vez mais comprometidas por aquele cheiro horroroso que me tonteava o bestunto cada vez mais. O fato é que, insígnia policial ou não, Teodoro levantou-se da cadeira e, de um modo mais enérgico, exigiu a saída do ébrio. Ele até saiu, mas ainda dirigiu algumas palavras de ordem aos presentes e queria a todo custo apertar a mão do velhote, enquanto eu já estava azul com aquele cheiro de óleo que inundava meus pulmões.
Tudo isso ocorreu num curto espaço de tempo, coisa de cinco minutos, mas a verdade é que fui o trajeto inteiro até a faculdade com o nariz tapado e entoando mentalmente uma moda de Teodoro e Sampaio, única coisa na qual eu conseguia pensar enquanto observava a pose triunfante do cobrador que contava moedinhas novamente com a visível sensação de dever cumprido. Daquele dia em diante, passei a fazer o percurso da estação do trem até a faculdade a pé.

3 comentários:

  1. Essa tua narrativa do pastel me deu enjoo, Ton. Mas, como sempre, você narrou com diversão e maestria mais uma cena do cotidiano. Adoro por demais!


    Beijo

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  2. Que delicia!
    E que vc seja o melhor veterinario de todos os tempos! Sem pastel, por favor...
    Saudades!
    Beijos

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  3. Me lembrei das minhas histórias do tempo que eu andava de Socaltur. Belo texto como de costume. :)

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