De volta ao começo

Blogueiro que se preze precisa escrever sobre o fim do mundo, não dá pra fugir do tema. Por mais que tenha sido uma enorme patacoada, mesmo que os Maias tenham cometido um pequeno equívoco clarividente, ainda que o banzé não tenha ocorrido da maneira como se esperava, é preciso que falemos a respeito de ontem, o derradeiro dia em que torceríamos a cola todos ao mesmo tempo em meio a catástrofes, inundações, bestas do Apocalipse cuspindo fogo pelas ventas e outras invencionices dignas do nosso amigo Spielberg.
Não posso dizer que acreditei em qualquer momento que fosse. Havia mais compromissos a honrar neste fim de dezembro do que ficar esperando o mundo velho virar de perna pra cima e ir para o beleléu. Amigo secreto daqui, festa de encerramento dali, provas finais, Salve Jorge e as contratações do Grêmio, tudo isso toma muito tempo do sujeito, fora os predicados. Mas, como não se pode gabar o burro antes de atravessar o lodo, fiquei de butucas ligadas atento aos comentários que permeavam o submundo da fofoca.
Numa esfera demente e bastante maiúscula, até mesmo em homenagem ao ano de declarações dantescas e recheadas de caps lock com meu compadre Fernando Mohr - conhecido nas melhores casas da região como Popins "El Arquero Coroinha" - resolvi brincar de fim dos tempos no dia de ontem, aboletado que estava com meus pensamentos lá em São Chico, na fazenda de meus avós. Volto a frisar a palavra DEMENTE, desta vez com a devida proporção que a palavra exige, para que todos tenham noção do relato hiperbólico que farei a seguir. Porém, é fato que, se o vivente resolver enxergar chifre em cabeça de cavalo, o danado aparece.

O dia amanheceu escuro, como todas as madrugadas se prenunciam. Antevi, contudo, que aquela escuridão poderia bem ser o tal capeta vindo a galope numa mula manca levar todo mundo à base de relho e espora pro juízo final. Quando as vacas do leite adentraram a mangueira, notei a ausência de Camélia, a primeira da fila.
Permitam-me um parágrafo explicativo para tal fato. Na fazenda do meu avô, a ordenha das vacas obedece uma ordem sistemática de modo a facilitar nosso trabalho. Os bezerros acabam assimilando a sua ordem de saída da estrebaria e, com isso, temos uma linha de produção bovina bastante interessante. Camélia é uma zebua brasina bastante imponente, com conformação de tetas bem angulosa e mansidão evidente, o que a credenciou para ser a primeira do lote.
A falta daquela vaca me fez tremer a passarinha. Teriam os Cavaleiros do Apocalipse começado o arrastão pela nossa pobre vaquinha? Nisto, zuniu um minuano velho de cortar os beiços e com ele veio uma chuva ameaçadora. "Abriram-se as comportas do aniquilamento", pensei. Fiz o sinal da cruz três vezes, beijei o dedo mingo no final e fui obrigado a começar a ordenha das vacas por Ameixa, a segunda da fila. Depois de algum tempo, quando já encostava no palanque a quarta ou quinta vaca, Camélia veio berrando da lavoura, o que julguei que fosse uma gárgula soando uma trombeta cabal e sugeriu um borrar de bombachas imediato. Apertei o fim do intestino delgado e engoli em seco o pavor, ordenhando Camélia e liberando-a para o pasto a tempo de uma última ruminada na paz do Deus bovino.
A chuva apertou na janela do galpão. Terminada a lida do leite, fui para casa tomar meu último café-da-manhã. Do lado de fora, uma curruíra piava com insistência a cada três segundos, o que despertou a curiosidade de minha velha avó, sabedora da impossibilidade de curruíras cantarem tanto a menos que o fim dos tempos esteja próximo. Passamos a deliberar a respeito do que o pássaro estaria fazendo tão perto da janela: minha avó pensando no bem-estar animal, e eu sabendo que o trinar da pequena ave significava o canto da purificação dos justos, aquele que separa o joio do trigo. Uma nova benzedura fez-se necessária.
Do galpão, emergiu meu avô, com a energia de quem mal sabe que o último suspiro está próximo. Entrou em casa batendo as chinelas como de costume, e alguém precisa lhe dizer que aquele boné com propaganda de posto de gasolina que ele usa ultimamente não combina com a estampa farrapa e caudilha que um Guabirova representa. A verdade é que o bonezinho é xumbrega pra caramba, tanto quanto a própria palavra "xumbrega". Vovó buscava algo na geladeira e ele já rumava para a pia do banheiro com a chaleira em mãos, quando de sopetão ele voltou, dando uma fungada no ar que me fez lembrar o reflexo flehmen dos touros, sentenciando:

- Essa geladeira tem um fedô.

Assim, de soco, sem motivo aparente. Aquela frase poderia ser apenas mais uma das minhas galhofas com o velho João Maria, mas tratava-se do fim do mundo e nenhum sinal deveria ser desprezado. Geladeiras não exalam maus cheiros à toa, e logo julguei que fosse o enxofre do Coisa-ruim escondido atrás da margarina que estivesse invadindo nossa morada rural.
A curruíra seguia cantando tresloucada, a chuva pingava intermitentemente e os sinais não paravam por aí. O Grêmio, com Dida no gol, enfrentará a LDU na Libertadores da América, num sorteio malfadado que veio anunciar que orações não mais adiantam e a porquinha, definitivamente, torceu o rabo. A voz rouca e sôfrega de Fábio Koff na Rádio Gaúcha mais parecia uma sequência insofismável de semitônicas desencontradas rumando para o precipício anunciado.
Pensei em beijar o dedo mingo outra vez, quando um estouro ecoou no vidro da janela da cozinha e desregulou minha flora intestinal para todo o sempre: os pássaros começavam um suicídio sequencial. Corri para ver se não seria a pobre curruíra estatelada no chão, mas logo escutei seu trinar mais uma vez, enquanto uma carucaca tratava seus filhotes com minhocas ainda vivas, evidenciando que ninguém mais era de ninguém, estava todo mundo nu e se querendo com quaisquer declarações não mais fazendo sentido algum.
O passarinho kamikaze ficou ali, abrindo e fechando o bico, como quem balbuciava em seus últimos momentos algo parecido com "fujam para as montanhas", o que me deixava sem pai nem mãe naquela hora, uma vez que eu já estava nas coxilhas da Serra Gaúcha e, na melhor das hipóteses, só me deixava como alternativa cevar um mate e correr pra cima do morro do Cerrito, onde Odenaur Pacheco tantas vezes pealou novilhas virgens em seus treinos para conquistar o topo do Rodeio da Vacaria.
Já perdido das ideias e enlevado pela inevitável aproximação da hora de bailar o chamamé grudado na cintura do capeta, passei a não mais contabilizar horas, minutos e segundos. Viajei no incessante trinar da curruíra, inspirei profundamente o fedor da geladeira, almocei minhocas de garfo e faca sentado à mesa com as carucacas de convidadas, ergui um brinde com um copo de leite da Camélia e entreguei-me eternamente à escuridão finita desse mundão velho que Deus criou em sete dias, mas resolveu derrubar numa bochada só.

E assim, deu-se o fim. Da picada, obviamente.

À meia-noite, a curruíra enfim encerrou seu canto e voou para o oco de uma bracatinga abraçada num morcego fumante vestindo uma jaqueta cujos dizeres nas costas explicavam todo o resto em duas palavras: NENHUM SENTIDO.

2 comentários:

  1. Muuuuito bom! Bah, nesse tu se puxou, meu velho!

    Abração!

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  2. Apenas morrendo de rir.
    Que sufoco hein Antônio? Deusolivre de um dia assim, justo quando o mundo inteiro acreditava ir pro beleléu!
    Um fedô na geladeira, nessas circunstâncias, realmente não é bom sinal. hahahahaha.
    Se superou cara! Adorei.

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