Mirrado feito um touro

Ano passado, quando iniciei meus estudos em Medicina Veterinária pensei que estivesse unicamente realizando um sonho de guri e rumando para a carreira que sempre quis seguir. Pois, para minha surpresa, o curso vem mostrando que sua capacidade vai além disso, servindo como um baita exercício de terapia reflexiva acerca de minhas inquietudes existenciais.
A Fisiologia, por exemplo, vem transformando a minha vida. Já contei outro dia sobre a epifania que tive ao finalmente compreender a osmose (leia AQUI) e dos pinotes que dei após finalmente compreender o supracitado processo celular. Cada vez que vou para a aula, sedento por beber a água cristalina da fonte do saber, fico pensando em qual surpresa estará tramando o destino para clarear minhas ideias.
Hoje, porém, o buraco foi mais embaixo. Mais que uma iluminação calorosa, a explicação da professora atingiu o âmago de minha autoestima e expurgou finalmente um dos últimos Mefistófeles que importunavam meus brios a cada vez que me via refletido nos espelhos da vida: minha escassa musculatura.
Sempre fui franzino e preciso confessar que não gosto disso. Ou melhor, não gostava. Apesar de fazer brincadeiras e rir da própria inaptidão muscular, na escuridão de meus segredos não revelados morava uma grande decepção por não ter nascido com predisposição genética a ter um tórax admirável. Fui a vida inteira o baixinho da turma, fracote, esquálido, magrelo e fiapo de gente. Além disso, os braços peludos e finos me pareciam espanadores ambulantes, uma miséria do cão.
Recordo inclusive de uma passagem de minha adolescência que durante muito tempo martelou meu orgulho. Certa vez, campereando em São Chico no inverno, meu avô e eu encontramos uma vaca atolada no banhado. Tava lá a bichinha, trancada no barro e congelando o esqueleto. O jeito foi apear do cavalo e acudir a pobre, que a lida campeira tem destes ossos do ofício. Seguindo as instruções do experiente João Maria, grudei no rabo e desatamos a puxar a cada contagem de três. Um, dois, três e, cacilda, como pesa uma vaca atolada! Puxei, puxei e nada daquele bicho sair do lugar. Foi então que meu avô, impaciente com o panorama desfavorável, desferiu uma frase que atingiu meu coração:

- Ele não é de força... - disse como se conversasse consigo mesmo.

Senti o tom decepcionado de sua voz. Um neto fracote, um maricas incapaz de puxar uma vaca pelo rabo, aonde iria parar o futuro da família se o controle caísse em minhas mãos frágeis e lisinhas de guri da cidade? Com sua imponência senil, do alto dos setenta e tantos, ele tomou a frente do procedimento, grudou o muque nas vértebras coccígeas da vaca, contou um, dois, três e deu um puxão que estremeceu o terreno. Rapidamente, correu para as guampas, tornou a grudar as munhecas e, num panázio só, desatolou.
Fiquei esturricado, humilhado e em depressão profunda. Ainda ajudei a arrastar a vaquinha para a grama seca, ao que logo a danada levantou e voltou para sua vida ruminante e feliz pelas coxilhas. Contudo, na minha cabeça só ecoava aquele "não é de força, não é de força". Só não argumentei porque estava esbaforido com todo o esforço que havia feito para ajudar e o ar ainda me faltava nos pulmões. Enquanto isso, meu avô montou novamente em seu cavalo e saiu faceiro assoviando uma vaneira dando continuidade à campereada como se nada tivesse acontecido.
Passada aquela experiência traumática, finalmente descobri nem tudo está perdido! Acabo de aprender um fator fisiológico que me recoloca no cenário garboso da estampa macanuda e farrapa. A questão está toda nas fibras. Fibras, mano! As danadas das fibras musculares dividem-se em tipo I e II, sendo que as primeiras tem menor diâmetro, com um maior fornecimento sanguíneo, quando expresso em capilares por fibra, possuem muitas e grandes mitocôndrias e muitas enzimas oxidativas. São por isso fibras com um metabolismo energético de predomínio aeróbico, resultando uma grande produção de ATP, permitindo esforços duradouros. Estas fibras predominam nos músculos dos atletas de endurance ou resistência. 
Essa parte em itálico eu obviamente pesquisei no Google, uma vez que o sono arrebatou-me de tal maneira na aula, que passei mais tempo com a cabeça aos solavancos entre dormir e acordar do que propriamente atento aos dizeres da mestra. No entanto, a parte das fibras chamaram minha atenção. Ora, o fato é que sou uma mina de fibras vermelhas, resistentes e abarrotadas de mitocôndrias, o que significa que minha praia é energia. As do tipo II são as brancas, pertencentes aos búfalos fortões das academias que puxam ferro como quem toca uma obra de Bach no violino. Em resumo, é isso.
Quando minhas sinapses convergiram assimilando esta verdade, minha visão da vida mudou. Foi como se uma injeção de alegria me fosse aplicada por via intravenosa e, no mesmo instante, estufei minha caixinha torácica e senti-me como um imponente garnisé que desfila seu penacho brilhoso no terreiro dos galos grandes.
Não que eu deseje que aconteça outra vez, mas, se outra vaca resolver frequentar o banhado e de lá não mais sair, prontamente ajudarei o velho João Maria a resgatá-la das garras da morte. Com toda a força que conseguir, puxarei o rabo e rilharei os dentes a fim de salvar o bichinho. E quero, ah, como eu quero que ele diga novamente aquela frase. Pode dizer, que diga mesmo, pois agora tenho um argumento incontestável, tenho a Fisiologia ao meu lado, palavras sábias de minha professora. Não sou de força, meu querido avô. O negócio do degas aqui é resistência. Resistência!


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