A prova e o crime

Quando decidi voltar à faculdade para finalmente estudar o que sonhei desde guri, sabia que não seria uma tarefa fácil. Não sou de queixumes e chorumelas e, ao mesmo tempo, sempre fui um rapazola estudioso, o que sempre me conferiu facilidades com os entrementes do aprendizado e, por consequência, boas notas em provas, trabalhos e adjacências.
Contudo, aos poucos a medicina veterinária começa a mostrar sua face sórdida e, de relho em punho, açoita meu pobre lombo juvenil com suas atrocidades vorazes. Chamar-me-ão de exagerado os ímpios, levantarão falsos testemunhos os que desconhecem a realidade, mas sou obrigado a vir aqui contar-lhes a verdade: amigos, o couro tá comendo.
Ora, vejamos a cadeira de Fisiologia, por exemplo. Funcionamento de tudo que tem no organismo e talicoisa. Tchê, o trem é feio uma barbaridade. São duas professoras, que multiplicam suas explicações durante as aulas, cada uma nas suas semanas determinadas. Chegam lá na sala, armam a bazuca e disparam mísseis informativos em nossas pobres mentes inférteis. Pra mim é grego, aramaico, russo e latim, qualquer coisa que não seja um idioma compreensível para minhas faculdades mentais.
Mas, é aquela coisa, a gente sempre pensa que estudando em casa depois a situação melhora. Não que eu seja aquele vivente que se diga "meu Deus, como estuda o Antônio, exemplo da humanidade", não é isso. De todo modo, o grau de dificuldade da matéria sugeriu que eu devesse atrelar o grão dos olhos aos polígrafos a fim de decifrar o conteúdo e contribuir com duas das poucas lições que aprendi e que existem em meu organismo: as sinapses e a homeostasia.
Pois bem, vesti a touquinha de natação estudantil e mergulhei na papelada. Li, reli, estafei o cerebelo e esfacelei epífises, hipófises e hipóteses. Hipócrita. Hipócrates. Sócrates. Futebol. E por aí vai, que minha capacidade associativa sempre consegue desviar do principal. Com isso, é fácil concluir que mesmo devorando conteúdo não foi possível completar essa chamada.
Nessas horas, o melhor a fazer é apelar pro Sobrenatural de Almeida. Fé, benzedura e oxalá, meu pai! Convencionei que havia feito o melhor que estava ao meu alcance e pedi ao anjo da guarda que desse aquela forcinha na hora de dissertar a respeito do que sabia e, principalmente, do que não sabia. E, como a crença no ente superior traz sempre um naco de energia positiva, passei a acreditar que yes, I can, fosse o que Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse e pé de pato mangalô três vezes.
Quando recebi as provas em minha mesa, uma de cada professora, entendi que Deus ajuda quem cedo madruga, mas não dá muita bola para quem vai madrugada a dentro estudando. Primeiramente, pensei em emitir grunhidos de pavor e simular espasmos na tentativa de escapar da sala rebocado por uma ambulância. No momento seguinte, um choro incontido travou na minha garganta, mirei o céu e perguntei a Javé pra que complicar tanto na criação dos seres vivos. Caramba, feitos de barro! Imaginem se tivesse resolvido criar tudo à base de ouro, não haveria quem aguentasse o tranco.
Diante daquele impasse estudantil, já ciente da peleia que seria enfrentar aquelas provas, recordei Leopoldo Rassier e, no ritmo de "não podemo se entregá pros home de jeito nenhum, amigo e companheiro" cerrei a faca entre os dentes. Poderia até morrer, mas não sem luta! Com o suor brotando das têmporas, bufando mais que boi de canga puxando tora do mato, empunhei a caneta, baixei o santo fisiologista e desandei a escrever como se a salvação eterna dependesse das minhas respostas.
A cada questão resolvida, uma batidinha na mesa e o xingamento baixinho de "toma, puta". Sem alusões às professoras, por favor. Era puro invocamento e encarnação dos caudilhos peleadores que desbravaram este Estado e fizeram do Rio Grande a pátria pampa que é hoje, com suas qualidades e defeitos. É bem verdade que precisei inventar algumas definições advindas da minha fértil imaginação, mas o negócio era não deixar nada sem resposta.
Ao chegar na última questão, exaurido pela batalha, tremi os cambitos. Já sem forças para elaborar conceitos, minha fisiologia humana foi derrotada pela exigência das professoras. Com o pulso velho tremulando mais que bandeira nacional em sete de setembro, consegui transcrever para o papel as últimas palavras que meu raciocínio produziu: "ainda que eu permaneça aqui pensando até amanhã, jamais conseguirei escrever esta resposta".
Foi assim, de maneira incompetente, porém impetuosa, que dei fim àquelas provas que representaram nada menos que um balde de água fervente no lombo depois de rolar num gramado cheio de rosetas e urtigas. Daqui para frente, definitivamente, o único recurso é estudar mais. Ainda que sôfrego, não tá morto quem peleia.

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