Temos cabelos nas ventas

Estou cheio de dedos para falar a respeito das manifestações que estão brotando nos quatro costados do país nos últimos dias. Todo cuidado é pouco, a população está inflamada. Não se pode simplesmente abrir o verbo, despejar opiniões e pensar que tudo está feito. O Brasil acordou, eis a frase do momento com a qual concordo plenamente. No entanto, não se pode sair da cama direto para correr a São Silvestre. Antes é preciso, no mínimo, tomar um reforçado café-da-manhã. Analisar os fatos, ler muito a respeito, buscar inspiração, avaliar as causas e, claro, preparar a coragem para estufar o peito. A batalha está só começando.
Ainda assim, tenho evitado o posto de dono da verdade que essa coragem repentina traz consigo. Este afã de manifestante não pode ser tratado como um poder advindo da estrelinha do Super Mario, onde nos tornamos inatingíveis e tudo deve ser varrido do mapa. Em nenhum momento vou generalizar, ou procurar encaixar qualquer tese em um posto conceitual e pragmático. O que está acontecendo agora, este despertar do gigante adormecido, é o começo de uma grande discussão acerca do futuro. Estamos finalmente construindo o futuro no presente, estamos pegando a realidade nas mãos, restando agora saber dar o destino correto a ela.
Cabe ainda um parágrafo aos atos de vandalismo praticados contra o patrimônio público. Ora, chega a ser uma obviedade. De tão condenável, absurdo e acéfalo, nada se pode fazer a não ser pregar a paz, seguir manifestando com inteligência, perspicácia e lucidez. É preciso vencer a força bruta pelo intelecto, matar no cansaço aquele que acha que a porrada resolve tudo. Vamos vencer pelo exemplo, é uma dupla batalha: contra o sistema e contra nós mesmos. A ideologia, ainda que tão ramificada, precisa unir-se pelo mesmo objetivo.

Este lusco-fusco nacional que tomou conta dos noticiários me fez lembrar que já fui um líder de manifestação. Foi no terceiro ano do Ensino Médio, lá se vão onze anos desde que o instinto ativista correu em minhas veias pela primeira vez.
Eu tinha umas colegas reacionárias que adoravam contestar. "Se hay gobierno, soy contra", esse era o lema delas. Não era à toa que nossa turma era muito criticada por todos os professores na questão comportamental, pois de fato conversávamos pelos cotovelos durante as lições, éramos dispersos e matões de aula. Ainda assim, não só as gurias como toda a turma começou a achar um tanto injusto aquele montante de reprimendas, tudo sempre nos colocando como os vilões da história.
Diante da proporção que a irritação coletiva tomou, certo dia fui intimado por aquela ala radical feminina a tomar a frente e organizar um protesto contra os professores. Como desde aquela época a postura amena já fazia parte dos meus atos, tratei de pensar em algo que fosse contundente e pacificador ao mesmo tempo. Pedi a palavra aos colegas e sugeri que fizéssemos uma greve de silêncio durante as aulas. Não reclamavam que falávamos pelos cotovelos? Pois bem, ignoraríamos a presença dos professores e faríamos com que eles sentissem que estavam diante de uma sala vazia.
A democracia, no entanto, estava à frente de tudo. Se alguém considerasse que determinado professor não merecia sofrer com a manifestação, aquele estava livre. Rapidamente, votamos em quais disciplinas protestaríamos e combinamos que a lei do silêncio imperaria durante as matérias dos professores escolhidos. E mais: se alguém fosse questionado a respeito da inusitada postura, ninguém deveria confessar o plano nem sob tortura!
A primeira vítima foi o professor de Química. Entrou na sala e recebeu um silêncio arrebatador, éramos uma trupe de mudos. Com a serenidade de um lorde, o catedrático iniciou sua aula como se nada anormal estivesse acontecendo. Todavia, diante da primeira encruzilhada a corrente arrebentou. O mestre solicitou que algum voluntário desse uma resposta e, para meu desespero, um colega empostou a voz e assentiu. A turma, em choque, aos poucos passou a colaborar com o professor e a aula transcorreu na maior normalidade.
Duas ou três professoras seguintes passaram pelo mesmo martírio, só que ao contrário. Ninguém falava com o colega ao lado, nada de conversas paralelas, quietude total. Contudo, bastava que alguma manifestação pertinente à aula fosse solicitada e logo alguém respondia de prontidão como se fosse o maior manifestante da classe. Atônito, fiquei pensando com meus botões se ninguém estava enxergando que aquela postura era um tiro no pé! Será que só eu percebera que o comportamento da turma estava perfeito para os professores? Fiquei sem graça de comentar, pois até as colegas revoltadas estavam agindo como duquesas pela primeira vez na vida enquanto respondiam alegremente às questões de Matemática.
Chegou a vez da professora de Biologia, absolvida do protesto por ser considerada uma pessoa legal e merecedora do nosso afeto. Mal colocou o pé na sala e um verdadeiro fuzuê teve início. Sem conversar há muito tempo, todos resolveram colocar os papos em dia, parecia um viveiro de papagaios cantando Chiclete com Banana em doze idiomas diferentes. Diante daquela loucura generalizada, a pobre da mestra fez uma pergunta que não esqueço jamais:

- Meu Deus, mas o que há com vocês hoje? O professor de Química acabou de comentar no intervalo que a turma estava tão comportada, que a aula foi perfeita...

Com a verdade vindo à tona, foi um cair de fichas generalizado. Todos se entreolhavam assustados, embasbacados pela triste constatação de que o tiro saíra pela culatra. Aquela mobilização não passara de um protesto falido, achamos que estávamos construindo o cavalo de Tróia quando tudo o que os professores queriam era exatamente um equino feito de madeira para enfeitar o seu jardim.
Para piorar a situação, alguém deu com a língua nos dentes relatando a real intenção do motim às avessas para a professora de Ensino Religioso entregando, inclusive, a minha participação como líder da causa. Fui chamado para um particular nada amistoso e acusado de agitador das massas, tudo em prol de quê? De uma manifestação furada! Levei um passa fora e tive de aceitar minha insignificância como um jaguara sarnento em dia de chuva.
Desde aquele malfadado episódio mantenho a cautela diante de toda e qualquer revolução. Felizmente, pelo jeito não é o que vai acontecer com o Brasil, as pessoas estão nas ruas protestando e fazendo valer a voz do povo que, como todos sabem, é também a voz de Deus. É uma nova oportunidade que a vida me dá de participar de uma manifestação, e dessa vez parece que vai dar certo. Se duvidar, ainda encontro meus antigos professores em alguma passeata. A vida dá voltas.



2 comentários:

  1. É bom começar o dia com umas risadas. Muito bom Toninho! Abraços

    Johnny

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  2. Pra ti ver, até tuas idéias mais revolucionárias agradam. Hehehehe. Os professores adoraram a greve de silêncio, só não podiam falar.

    Beijo, Dani.

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