No sonho dos outros é refresco

E foi aquele banzé! Gente se acotovelando, guri perdendo o chinelo de dedos na correria, mocinhas num berreiro alucinante, tudo para ver o campeão olímpico. Quando o caminhão dos bombeiros dobrou à esquina para a avenida principal de Santa Vitória, o cenário transformou-se em algo parecido com o que Chico Buarque descreveria assim:

"O homem sério, que contava dinheiro, parou
O faroleiro, que contava vantagem, parou
A namorada, que contava as estrelas, parou
Para ver, ouvir e dar passagem"

Renato Rocha, possante, ostentava no peito a primeira medalha de ouro conquistada por um mergulhão na história da cidade. A modalidade? Não interessa! O sonho é do cara e a medalha é dourada, o resto é toleima.
E como pesava aquela medalha! Singela, pequenina e brilhante, mas pesava tal qual um cincerro enferrujado, ou feito uma canga que esbudega com o pescoço da esforçada junta de bois do Seu Gaspar Assis, o Paraná e o Sertão (porque junta de bois que se preza tem que ter nome). O fato é que pesava uma barbaridade. Talvez o peso da responsabilidade de medalhista olímpico.
Da mesma forma, brilhava. Pela mãe do guarda, como brilhava! Suspensa por uma faixa encarnada, reluzia o astro-rei na figura do atleta gravada no centro, e mais acima o tradicional "honra ao mérito", devidamente gravado em chinês, algo que na pronúncia soava como tizuín-zadou.
Ao lembrar dos dizeres que a autoridade chinesa lhe disse ao entregar a medalha, fechou os olhos e recordou as farras na vila olímpica, aquela noite em que comemorara o ouro correndo nu atrás de uma chinesinha em trajes sumários. Ou então das peripécias que aprontara com seu amigo etíope às vésperas da maratona, uma festinha particular que contou com duas suecas e uma eslovaca - esta última perita no salto com vara.
Quando abriu os olhos, já estava em outra festa. Não sabia direito se era a Taberna, ou o Engenho, enfim, um dos lugares imponentes de Santa Vitória onde um campeão deveria ser recepcionado. Pai, mãe, sobrinhos, amigos, demais parentes, todos comemorando efusivamente o feito conquistado. Seus dois filhos correndo pra lá e pra cá, sob os olhos atentos da esposa, também orgulhosa pela vitória em Beijing.
De repente, mulheres. Muitas mulheres de ilhargas generosas e demais curvas tão acentuadas como as da estrada de Santos, todas lindas e perigosamente provocantes. Atirado numa esteira, abanado por dois eunucos albinos com galhos de palmeira das Ilhas Canárias, contemplava o espetáculo que a natureza feminina lhe proporcionava.
Dentre todas, havia uma magrinha, feia igual a um tombo de mão no bolso, daquelas mais sem graça que dançar com a irmã. Estrábica, sorrisinho medonho, até meio ranhenta, não conseguia enxergar direito no escuro. Enamorou-se do capeta. Beijos e amassos no tribufu, mãos ávidas e manobras arriscadas em meio à festa, enquanto a esposa, plácida, atendia à correria do pequeno rebento com parcimônia, parecendo não dar a mínima importância ao adultério do marido campeão olímpico.
Após algumas horas de bárbaro frenesi sobre a esteira, algo que lembrou uma final da luta greco-romana, a magricela pediu licença e foi ao toalete. Ao perceber a silhueta da pinguancha, Renato apavorou-se: estava agarrado ao pior dragão da festa, nem São Jorge teria coragem de encarar aquela bronca. Olhou para seu pai, que tentava, em vão, escorar-se num pilar para disfarçar a embriaguez evidente e deu um tapa na fronte atestando de vez a burrice cometida. Ora, entreverar-se justo com aquele serzinho minguado num dia de tamanha glória, faça-me o favor!
Porém, redimiu-se. Quando a baranga retornou, toda sorridente, o que evidenciou a falta de vários dentes em sua boca, Renato desandou a proferir impropérios. Falou da bunda da criatura, algo como "essa porcaria sem carne nenhuma" - e, de fato, a moça não pesava mais que 35 quilos - seguindo com toda a sorte de palavrões, muito bem elaborados por contribuição da cerveja que rolava solta na festa. Imagine, ele, um campeão olímpico, medalha de ouro reluzindo no peito, dando moral pra mulher mais horrenda da festa (dizem as más línguas que ele gritava isso, só de samba-canção, subido numa mesa de plástico)! Enfim, uma baixaria sem tamanho.
Diante daquele circo dos horrores, o pior aconteceu. Compadecida do choro copioso da feia, eis que surgiu sua esposa em defesa da parente do Beuzebu! Uma reprimenda das brabas, dedo em riste, tentando lavar a honra da medonha, que a essa altura assoava o nariz num lenço amarrotado que seu velho pai, bêbado, porém ainda galante, lhe oferecera.
Algo inacreditável, logo sua esposa defender a rival! Bem, levando-se em conta a ausência de beleza da criatura, qualquer mulher sentiria pena e nem aceitaria como rivalidade, e sim como obra de caridade do marido, vai ver era isso. Pitoresco mesmo foi acreditar na cena final, a mãe de seus filhos abraçar a bruaca e consolá-la dizendo que ele era mesmo sempre assim, reclamava de tudo e mimimi.
E o que começou no auge do sucesso, com carreata pela avenida principal, terminou na sarjeta, voltando pra casa abraçado ao pai, medalha no peito, os dois descalços e cambaleantes, cantando: "Dirceu é um bom companheirooooo... Ninguém pode negar!".

*Texto dedicado ao meu amigo Renato Rocha, que chegou contando esse sonho louco outro dia.

10 comentários:

  1. Que sonho louco...
    Adoro sonhos, pois eles nos fazem estar em vários lugares, fazendo várias coisas...

    Beijão pra tu

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  2. Bah, se bem que a feinha, não era tão feinha assim, huahuahuah!!!
    Imagina o consentimento da patroa???
    Abração, e muito obrigado pela lembrança!!!

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  3. pois é... esses sonhos malucos... rsss

    tô sumida daqui, né? nunca mais eu comentei, mas saiba que eu sempre passo aqui pra saber de vc.



    bjo*

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  4. Ahahahahaha... contar o sonho dos outros pode ser algo bem divertido! ahaha
    Bjos

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  5. Isso enche de esperanças as feinhas que estão em busca de um chinelo velho pra esquentar um pé cansado. Dizem que sempre tem, né?
    Afinal, é a beleza que importa mais???

    Cara, eu queria lembrar de sonhos com essas riquezas de detalhes!


    Fiquei chorando de rir com o "feia igual a um tombo de mão no bolso" - imaginei t-o-d-a a cena hahuahuahuauhauha mto bom

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  6. Hahaha, que sarro essa história. Mas como pode a criatura lembrar de todo o sonho? Até já pensei em colocar um caderninho do lado da minha cama p/ escrever meus sonhos com todos os detalhes, renderia posts muito bons...hehe
    Mas sobre a magricela (35 Kg, minha nossa, tava viva a mulher? hehe) até imaginei a feiúra da criatura, tadinha... Também merece um minuto com um campeão não?
    Quando as mulheres não devem ser unidas, é que são, vê se pode? Huahauahu
    Post muito bom Antonio! (normal né?!)
    Beijão

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  7. Que sonho mais maluco e bom!!!rsrs

    E a feinha, meu Pai!!! Fiquei ensaiando a cena de como se cai com a mão no bolso...huahauhau

    Você tem uma das narrativas mais divertidas que ouvi dizer, Antônio. Parabéns cara!

    Abs.

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  8. 'Por que não sorri para mim
    Um carinho feminino?'

    Seus versos lá no meu cantinho deram mais um sabor, Antônio! Existe o amor e o avesso. Só não desacredite [nunca] do amor. E enquanto ele não chega sem causar dor, você pode continuar tranformando-o nesses versos que são tão bonitos.

    Grande beijo!

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  9. E eu acho meus sonhos malucos detalhados! hahahahahah
    Tem gente mais maluca que eu. Sorte a dele ter um talento como o teu pra descrever a maluquice.
    Beijo meu querido!
    ;)

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  10. Eu que venho sofrendo um pouco com essa coisa de escrever, sabe? Fico pensando, pensando e pensando sobre o que escrever e acabo não conseguindo produzir textos da forma que eu queria.
    Bjitos!

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