A placa

Às vezes, sou um tanto egoísta. Há certos momentos da minha vida que eu prefiro curtir em silêncio, onde escolho contemplar meus gostos acompanhado apenas da solidão e da minha fértil imaginação. Porém, só às vezes. É esse detalhe tênue que me mantém a um passo de me tornar um eremita.
Um desses momentos é ir para a fazenda. Depois que comprei meu carro, desenvolvi verdadeira predileção por pegar a estrada minutos antes do sol nascer e acompanhar a evolução do seu movimento de rotação enquanto me dirijo a São Chico. Minha mãe não gosta, diz que vou detonar o carro na esburacada estrada de chão, mas eu não me importo. Os fins justificam os meios.
Domingo passado, enquanto curtia o sacolejo que o cascalho provocava em meu veículo, seguia tranquilo admirando a paisagem do pampa serrano. Uma vaca pastando bucolicamente ali, uma toiça de macega balançando ao vento acolá e, ao mesmo tempo, envolto pelo canto das carucacas, símbolo-mor, pelo menos para mim, de que aquele chão é perfeito.
De repente, deparei-me com um artefato inusitado manchando a paisagem. Uma placa. Tratava-se de um pedaço de papelão pregado numa ripa fincada ao chão, com uma palavra escrita, creio eu, a giz de cera preto ou carvão. Nela, apenas uma palavra escrita. Um verdadeiro absurdo, diga-se de passagem. Franzi o cenho e me perguntei quem teria a petulância de colocar aquilo ali. Pensei em parar o carro e moer a placa a pontapés, quanto vandalismo. Contudo, dois segundos de reflexão me fizeram rever a minha vontade. Entre embasbacado e indiferente, segui meu caminho com uma pulga atrás da orelha e a certeza de que ainda voltaria ali naquele dia para destruir aquela porcaria.
Foi o que aconteceu à tarde. Saímos, meu avô e eu, a cavalo para buscar umas novilhas para vacinar. Sabedor de que nada passa batido aos olhos de lince do velho João Maria, resolvi ficar quieto e esperar ele enxergar o corpo estranho na estrada. Dito e feito. A cinquenta metros do local, vi que suas anteninhas de vinil haviam detectado a presença do inimigo. No melhor estilo "sigam-me os bons", fui atrás para ver a reação dele.
Ele chegou perto, leu a palavra, ficou em silêncio, rodeou a estaca e parou. Pude perceber que ele leu de novo, e de novo e de novo. Ainda assim, permaneceu quieto. Me olhou, mirou-a novamente, também franziu o cenho e, após alguns segundos de reticências, indagou:

- Quem será que fincou essa placa aí?

Num gesto surpreendente, grudei o cabo do relho e VAPO! Sentei a munheca no papelão, que voou longe e caiu com a palavra virada para cima. As éguas se assustaram e meu vô não entendeu nada. Chegou perto do escrito, leu outra vez e arriscou:

- "Gái"?

Suspeitei desde o princípio, ele não conhecia a palavra. Era a deixa que eu queria:

- Não, vô. É "gay".

- Mas não é um A?

- Sim, mas é inglês.

- E aquilo ali, é um... é um...

- Ípsilon.

- Ah...

Eu já esperava pela pergunta seguinte:

- E o que é isso?

- Um xingamento.

Que fique bem claro que eu não tenho absolutamente nada contra homossexuais, não se alvorotem. Só que é mais do que óbvio que quem pôs aquela placa no meio da estrada tinha o intuito de xingar alguém, ou fazer um chiste, ao que interpretei com essa conotação.
De qualquer forma, o silêncio do João Maria foi eloquente. Seguimos rumo à busca das novilhas e ele mudou o rumo da conversa para a especulação do porquê da placa estar ali, ignorando minha afirmação. Isso durou uns trezentos metros. No fundo, sabia que ele estava em polvorosa de curiosidade para saber o significado da palavra. Realmente, eu estava certo:

- Tu disse que é um xingamento?

- Sim, um palavrão, uma sacanagem.

Que mau que eu sou. Ao invés de explicar logo e acabar com a angústia, não, segui enigmático, dando pistas incompletas. Acontece que eu queria poupar-nos de um momento constrangedor. Vocês sabem, meu vô é de outra época, onde pão era pão e queijo era queijo, quis evitar uma polêmica desnecessária. Apenas quis, mas não consegui por muito tempo. A cada passo da égua, percebi que retumbava em seu cérebro uma aflição sem fim por saber o significado daquele singelo vocábulo estrangeiro. Bom neto que sou, resolvi esclarecer o mistério:

- É o mesmo que chamar alguém de veado.

Não foi uma frase natural de se dizer. Nunca falei nada parecido sobre preferências sexuais com meu vô. Pra que bater de frente com os dogmas dele, né? Sempre evitei esses papos cabeças, sexo, drogas e rock'n'roll. Lembro inclusive de certa vez que caí na besteira de afirmar que era o Sol quem girava ao redor da Terra, e não o contrário. Vejam bem, um papo comum! Quase fui excomungado. Ele teimou com veemência dizendo que eu estava dizendo uma heresia. Galileu Galilei seria expulso da fazenda em dez minutos, tenho certeza. Não que meu vô seja ignorante, ele apenas não estudou o suficiente para ter acesso a esse tipo de conhecimento que, por sinal, não serve para nada, né? Ou para vocês faz diferença ser o Sol quem gira em torno da Terra?

- Ah é?

Não foi uma interjeição comum. Teve o triplo de surpresa do que um "ah é" comum. Aliás, foi por isso que enrolei ele por tanto tempo. Imaginem, vem um cidadão e traz um acinte daqueles para um naco de terra do globo terrestre ainda virgem e preservado desse tipo de modernidade. É pra dar nó em qualquer bigode gaudério.
Assenti que, sim, era aquilo mesmo, expliquei que gay é o mesmo que homossexual e que, comumente , é uma palavra usada entre os homens para pôr em xeque a masculinidade alheia, seja de brincadeira ou não. Não que tivesse esperanças de que ele entendesse e concordasse, o que inclusive ficou claro com a frase dita em seguida:

- Esse mundo velho tá virado de perna pra cima.

Ainda tentei, em vão, argumentar, dizer que atualmente isso é comum nos grandes centros, que a união entre pessoas do mesmo sexo vem sendo bastante difundida, aceita pela sociedade e talicoisa. Não adiantou quase nada. A frase que encerrou o assunto, por sinal, deixou bem claro que a tradicional filosofia campeira ainda não está preparada para aceitar certos avanços que o século XXI trouxe consigo. Do alto de seus setenta e tantos janeiros, as melenas já um tanto brancas, herança de anos de lida bruta, o vô estufou o peito e lançou no ar uma frase que o minuano carregou para longe, indicando que ainda há muito pano pra manga:

- Larga um lote só de touros numa invernada e vê se nasce algum terneiro...

5 comentários:

  1. hahahahaa! Já disse que quero conhecer esse lugar, né? Agora, reiteiro isso e digo mais, quero conhecer teu avô também! A-do-rei o comentário dele sobre a placa infâme. Também não tenho nada contra opções sexuais, mas concordo plenamente com o comentário!
    E, voltando ao início do texto, no qual tu coloca: "É esse detalhe tênue que me mantém a um passo de me tornar um eremita. Eu quero reforçar mais ainda que tu me completa, eu também estou a um passo de me tornar eremita!
    Demais o texto! Apesar de eu ser suspeita pra falar algo sobre eles, adorei mesmo. Continua escrevendo, e se for pelo meu incentivo, melhor ainda!
    Mil beijos, até mais :*

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  2. Tu é muito esperto, assim como ficou fazendo suspense pra explicar pro teu vô, me deixou curiosa pra saber qual a palavra da dita placa... hehehe!
    Bah, imagino a cara dele lendo isso e tua cara te segurando pra explicar. Só vocês dois mesmo! Juntos sempre dão história! ;)
    Beijo!!

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  3. Cabeças brancas sempre com boas frases!

    Grande Abraço!

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  4. Só imagino o gaudério João Maria lendo uma palavra dessas! hehehe
    Muito bom o texto, bruxo!
    Abraço!

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  5. Ele disse tudo!

    E sim... Algumas informações são mesmo desnecessárias... E ele pode não saber inglês, mas tenho certeza que se um turista qualquer viver pras bandas daqui, não vai saber cuidar de uma fazenda como ele...

    E eu entendo bem isso de evitar alguns assuntos... Meu avô teima em dizer que vai ter uma revolução comunista no país e que logo seremos expulsos... Faz anos que ele diz isso e espero até hoje!

    Ah! E gostei de te ver lá no blog... Tava com saudade já!

    Beijãooo

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