O sono reparador

Certa vez, vi uma menina contando sua história para algumas pessoas. Tímida, sem a maior das intimidades com as palavras, em determinado momento ela disse algo que, por mais simples que tenha sido, nunca mais esqueci. Disse que, quando criança, ia com seus pais visitar a família numa cidade distante e, pequenina que era, acabava dormindo durante as nove horas de viagem até a chegada tão esperada. Com isso, ao despertar, parecia que tudo havia passado tão rápido, que lhe fazia pensar ser curta a distância entre as cidades que, na realidade, era de 600 quilômetros.
Eu queria, sinceramente, crer que as distâncias da vida são coisas simples, resolvidas com algumas horas de sono. Juro que, se pudesse, veria tudo com olhos de criança otimista, que chegam ao céu cerrando os olhos por alguns instantes. Fosse o dono do que sinto, certamente tentaria errar menos, agir com a menor precipitação possível e controlaria cada palavra dita, cada atitude tomada. Mas, se fosse assim, não seria eu.
Porque eu, ultimamente, não dou uma dentro. É sério, tá tudo errado. Se eu entro em campo, a braçadeira de capitão no bíceps esquerdo, todo possante e pimpão (palavra esta escrita especialmente para fazer alguém sorrir), meu paraíso termina quando a primeira bola chega aos meus pés e, desastrosamente, erro o primeiro passe. Erro também desarmes, cabeceios, tempo de bola, estou um desastre. Erro no trabalho, nas afirmações, na maneira de ser e agir. Repito, ultimamente não dou uma dentro.
Agora há pouco, enquanto mirabolava este texto, assistia também ao Big Brother, concentrando todas as minhas forças na eliminação da Lia. Há dois meses que esperava por este momento sublime de vê-la abandonando a disputa. O que, por sinal, é contraditório, porque se julgo que uma pessoa não merece um prêmio por ser chata e cometer erros grotescos, então também tenho que admitir que não mereço, pois sou um chato xingador que comete, sim, toleimas homéricas.
De todo modo, gargalhei ao vê-la cruzar a porta de saída da casa. Contudo, foi dela a frase que mereceu citação por aqui, uma vez que acaba se encaixando na minha linha de raciocínio. "Como é bom gostar de alguém, porque podemos dividir as alegrias e as tristezas". Mais ou menos isso. E, assim como ela, que meteu os pés pelas mãos por querer ser verdadeira, acabo deslizando tantas vezes e, adivinhem, não dou uma dentro.
O detalhe é que a vida não é um reality show da Globo, onde temos uma pessoa querida 24 horas por dia ao nosso lado perguntando se está tudo bem, dando amparo e carinho. Tampouco é a vida um caminho facilmente atravessado dormindo apenas algumas horas singelas, pelo menos não para os adultos. Diante dessas intempéries, o que acontece? Erro.
Da ingenuidade da infância, os adultos conseguem a façanha de renomeá-la: tolice. O mundo está recheado de tolos. E estes, normalmente, constróem um abismo entre si e a felicidade, destino que só alcançam os sortudos, aqueles que dão uma dentro. Ao contrário de quem? De mim, que, pela terceira vez, não dou uma dentro. Assim seguiria afirmando se escrevesse mais dezessete ou quatrocentos parágrafos.
Mas, não, vou escrever apenas mais um. Para dizer que é tarde, e preciso dormir. Aliás, preciso muito dormir, e quero dormir mais e mais, o tempo todo, a vontade é de dormir para sempre, acordando somente quando, adivinhem, tiver condições de dar uma dentro. Coisa que as repetições da vida não têm conseguido nos últimos tempos.

Boa noite.

5 comentários:

  1. Eu queria que as grandes distancias tbm passasem com uma noite ou uma tarde de sonho.
    Adorei o seu texto, Antonio. Como sempre vc consegue dizer muito bem aquilo que pensa.
    Eu sei que eu tbm queria dormir pro tempo passar mais rápido, mas não saberia me explicar com tanta clareza como vc faz...

    bjos querido

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  2. nossa.. eu adorei o texto.. meio sem palavras pra comentar.. mas a grandes distâncias existem, pq sem ela não saberíamos valorizar o quanto já percorremos..

    ps: fiquei extasiada qdo a lia saiu do BBB

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  3. Já deu uma dentro assim que percebeu que não dá uma dentro. (apesar de acreditar que esse é um texto melancólico, daqueles escritos em um momento próprio de quem quer mais da vida, do mundo e de si mesmo)
    Leitura fácil dinâmica e ritmada. E mais que tudo isso, entupida de sentimento!

    Adorei tuas letras.

    Meubeijopravocê

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  4. Calma, calma, calma...
    Não te cobra tanto!
    Às vezes a gente não dá 'uma dentro' porque a pessoa que vai receber a bola tá distraída e não dá sequencia na jogada. Nem sempre a culpa é do passe.

    Beijo.

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  5. as dificuldades e agonias de criança sao tao facilmente resolvidas..poderia continuar assm né?
    a mesma pureza e ingenuidade..
    mas de qualquer forma temos q crescer e lidar com 'distancias'maiores,muitas vezes a mesma,apenas vivida de outro angulo!
    otimo texto!

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