O dia em que meu irmão aprendeu a ser gremista

O que aconteceu ontem em Porto Alegre, mais precisamente na avenida Azenha, dentro do estádio Olímpico Monumental, foi algo que apavorou gaúchos, brasileiros e, por que não dizer, o mundo. Pode parecer exagero, mas a comunidade futebolística, a mídia esportiva e todas as opiniões que ouvi comungam dessa tese.
No entanto, em meio aos entrementes de uma partida epopéica protagonizada por Grêmio e Santos, presenciei, dentro da minha casa, a conversão de uma criança comum, desfrutando a inocência da tenra idade, num gremista apaixonado, copeiro e peleador. Segue abaixo mais um relato sobre meu irmão caçula.

O embate começou nervoso. Todo gremista tinha consciência da dificuldade que seria encarar o escrete santista. Como espectador de partidas de futebol não controlo a língua, falo mesmo. Converso com os jogadores, oriento, xingo, brado impropérios e, enfim, ajo como um bom brasileiro que ama o esporte.
À minha direita, com a serenidade de um hipopótamo, encolhido no sofá, estava meu irmão. Assistia ao jogo com a mesma sonolência de quem assiste ao Bom Dia Brasil. À frente, que surpresa, mamãe decidiu também partilhar daquele momento conosco, fato raro lá em casa.
Em poucos minutos, o Santos pegou no cabo do relho e desatou a açoitar meu pobre Grêmio, convertendo essa metáfora num dois a zero maiúsculo. Atônito e xingando toda a genealogia dos atletas gremistas, passei a exigir atitude, raça e, claro, qualidade suficiente para que a equipe se redimisse daquela situação vexatória.
Admito que não devo ter feito isso de maneira cordata, o que desatou no guri ao meu lado uma incontrolável gargalhada. Ele mordia a blusa, tapava a boca, pois percebia meu estado dilacerado de torcedor que vê seu time perdendo e nada pode fazer, mas não foi suficiente. Riu a borbotões plenos da minha cara.
Fosse noutra situação, indignado por indignado, poderia descontar a raiva condenando o chiste do caçula, mas engoli a seco. Melancólico, apenas pedi a Deus, a Silas e a Victor que não permitissem uma goleada hecatômbica.
O primeiro tempo terminou, minha mãe cansou de escutar meu vasto repertório de palavrões impublicáveis e recolheu-se em seus aposentos. Já meu irmão, indiferente à sumanta de laço que seu time tomara no primeiro tempo, prostrou-se diante de seu álbum de figurinhas da Copa do Mundo e viu mais vantagem em contemplar suas páginas do que continuar rindo da minha cara.

Aí, veio o segundo tempo.

E, com ele, trouxe o tricolor a imortalidade do vestiário. Escangalhado pelos torpes quarenta e cinco minutos passados do primeiro tempo, eis que uma fagulha de esperança foi acendida quando Borges descontou o placar, marcando o primeiro tento gremista. Aliás, na origem do lance, enquanto a jogada era desenvolvida por Edílson na lateral-esquerda, meu irmão abria a primeira página de seu álbum pela segunda vez, demonstrando total descaso com a televisão.
O gol, porém, o fez mirar a televisão por poucos instantes. Ainda assim, sem brilho nos olhos, sem a esperança da virada que um torcedor deve nutrir. Com isso, e como dois a um ainda era sinal de derrota, voltou a fitar o álbum e abriu novamente a primeira página. E, com mil onças pardas reumáticas, quando ele tornou a folhear o álbum, o Grêmio empatou. Ganhei uma síncope comemorativa, bati na parede, saltei feito um canguru hiperativo, dei escândalo. Beirei sete ataques epilépticos em série. Ser torcedor não é fácil, requer preparo físico para esses momentos de alteração emocional.
Meu irmão, contudo, virou uma estátua de olhos arregalados. Pude ver uma aura azul sobre seus cabelos castanho-claros, o espanto vindo daquele olhar infante. Gaguejando, como quem não sabe se argumentará com propriedade, virou-se pra mim e balbuciou:

- Mano, tu reparou que cada vez que eu abri o álbum na primeira página o Grêmio fez gol?

Assenti alegremente, ainda anestesiado por aquele empate heróico, tanto que nem cheguei a desenvolver o assunto acerca da mística levantada pelo guri. Notei, no entanto, que ele passou a abrir o álbum a cada ataque do Grêmio e, Deus seja louvado, em cerca de poucos minutos aconteceu uma virada que eu jamais havia contemplado.
Eu não sabia se chorava, se gargalhava loucamente e, na comemoração do terceiro gol, tudo o que consegui fazer foi olhar pro meu maninho, abrir os braços e dizer:

- Me dá um abraço!

Nascia ali um gremista de verdade. A cada escanteio que nosso time conquistava, ele abria o álbum com devoção; a cada ataque do Grêmio, eu incentivava:

- Abre o álbum! Abre o álbum!

Deus, que deve gostar de mandingas, ou de álbuns de figurinhas, ou dos dois, premiou nossa crença com o quarto gol do Grêmio, e confesso a vocês que não sei o que fiz na hora da comemoração. Minha alma saiu do corpo e foi até o estádio abraçar o Borges, artilheiro nato da noite, enquanto meu corpo seguia debatendo-se animalescamente, como se houvessem bilhões de pulgas na minha cueca.
A essas alturas, meu irmão levava as mãos à cabeça incrédulo, presenciando um marco na história do balonpié. Uma criança inocente despertando para a magia da paixão nacional, ao ver seu time depenando o Ganso, seus atacantes fazendo a dancinha dos meninos da Vila e experimentando o doce sabor de torcer para o tricolor dos pampas. Ainda levamos o terceiro gol, é verdade, mas era tarde demais. Ganhamos a partida e, exausto, ainda tive tempo de olhar no grão dos olhinhos do meu maninho caçula e sentenciar:

- Esse é o nosso time, cara! Esse é o Grêmio!

Mais do que uma vitória heróica, mais que uma partida de futebol histórica, mais do que dar um piti à frente da televisão, ontem à noite presenciei a consolidação de um gremista. Esse eu garanto que nunca mais ri da minha cara.

5 comentários:

  1. Agradeça também ao Rodrigo Mancha! aahiaohaiohaa

    Mas REALMENTE: que JOGASSO!

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  2. O Grêmio vai sair campeão...o Grêmio vai sair campeão!!!

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  3. Cara, cheguei a me arrepiar ao ler esse texto.

    Estive no estádio e não sei descrever o que aconteceu naquela noite! Foi algo inenarrável!

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  4. Parabéns pelo texto. Fácil de entender e gostoso de ler. Ia deixar de ler pelos meios do caminho, mas, juro, não consegui. Fiquei preso nas linhas e cheguei até o final. Aí percebi, que não poderia fazer outra coisa, senão estar aqui postando este comentário.

    Queria ter essa facilidade com a lingua pátria pra poder escrever bonito assim no meu blog http://ronaldocampos.blogspot.com.

    Vou colocar um link lá para o "Que Momento!"

    Abraços

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