Pelegus

Sair da casa de minha mãe após 26 anos foi algo peculiar. Não classificaria como traumático, mas também não seria capaz de afirmar que foi simples. Senti a vida erguendo um machado recém afiado e dando uma verdadeira bordoada no cordão umbilical da simbiose que mantive com minha genitora durante todo esse tempo.
Devo confessar, inclusive, que a Dani veio com mais experiência que eu no que tange a administrar um lar e todas as suas contas. Por sorte, meu estilo sovina de administrar as finanças acabou ajudando-nos a manter os cofres em ordem e, pelo menos por enquanto, a crise mundial ainda não afetou nossas contas bancárias.
Porém, há um detalhe em especial que só veio aparecer depois da mudança: pêlos. Assim, com acento circunflexo mesmo, que a tal da nova ortografia ainda custará a digerir em meu estômago literário. Às vezes, sinto-me como aqueles velhinhos que ainda escrevem “pharmácia”.
Quando eu tinha uns 16 anos, comecei a notar que meu corpo mudava cada vez mais rápido. Aquela coisa de puberdade que todo mundo conhece, a voz que sobe três oitavas em dois segundos e talicoisa. No meu caso, a protuberância mais veemente aparecia nas pernas e nos braços. Chumaços de novos pêlos surgiam todas as manhãs, o que me convencia finalmente que a descendência dos macacos tão falada nas aulas de História fazia algum sentido afinal.
O trauma, contudo, veio num dia bucólico em que, após o banho, enquanto observava frente ao espelho as transformações que adolescência vinha produzindo, caí na besteira de virar de costas. A imagem que tive jamais sairá de minha memória: a parte posterior de minhas coxas, aquela região que fica logo abaixo do traseiro, valha-me Deus, estava totalmente tomada de pêlos. Senti-me um Tony Ramos gaudério, entrei em desespero. Cheguei a prestar mais atenção no calendário lunar, pra ver se sairia uivando nas noites de lua cheia, tamanha a pelagem desenvolvida naquela área de meu corpo. Se juntasse todos os pêlos que eu descobrira, daria facilmente para montar a barba do finado Enéas, a do Lula, mais os bigodes do Paixão Côrtes e do Olívio Dutra. Eu era um pelego humano.
De lá para cá, tive de superar na marra essa inóspita característica. É a tal coisa, quando Deus quer, até égua velha nega estribo. Enquanto meus amigos multiplicavam seus músculos e viravam verdadeiros touros, eu mais parecia um iaque. Ainda assim, segui a vida feliz, sorridente, simpático e peludo. Isso sem falar que a situação piorou com a chegada da barba cerrada e os pêlos do peito, ao que meu amigo Biriba classifica ironicamente como pulôver. De todo modo, acabei acostumando com minha condição “lobisômica”, dotada de um par de polainas nos braços e pernas demograficamente tomadas por cabelos pretos.
Acontece que, passado o trauma inicial, até então eu nunca tinha visto rastros disso dentro de casa. Lá na mãe o chão é escuro, o que tornava pouco notável a presença de um urso humano na residência e, com o tempo, sugeriu-me até que eu nem fosse tão peludo assim. Isso durou até eu passar a viver num lar de piso branco. Passada uma semana na casa nova, o chão ficou tomado de pêlos por toda parte. No banheiro, então, bah! Aquela cerâmica branquinha parece um imã onde grudam todas as centenas de cabelinhos que caem de mim a todo instante, gerando verdadeiras colônias peludas e pretas, um horror. Desconfio, inclusive, que os malditos se multiplicam, porque não é possível a quantidade de pêlos que cai, periga até o chão pegar piolho. Já consigo imaginar a Dani limpando o banheiro com Escabin.
Alguém dirá que sou exagerado mas, acreditem, a hipérbole é justificável. Até a sala está tomada de fiapos, é um negócio medonho. A sorte é que, aqui no condomínio, o porteiro sempre interfona quando chega alguém. É nesse intervalo entre o anúncio e a chegada da visita que eu bato o recorde sul-americano de vassoura na mão e dou uma geral na sala pra tapear a cabeleira que forma novelos no piso, deixando a vassoura com um aspecto de Moraes Moreira.
Os pelinhos, contudo, são ainda mais sádicos. A cada passada de vassoura que dou, os danados que já tinham sido varridos voltam! É uma revolução peluda, um acinte à higiene, um desrespeito total aos direitos de se manter uma casa sob a mais perfeita ordem.
"Depile-se", alguém dirá. Bem, aos infames que tiverem a desfaçatez de desejar tamanho sofrimento à minha pessoa, lhes afirmo: uma coisa é chegar ao fundo do poço, mas outra bem diferente é descobrir que nele há um subsolo. Jamais! Nunca! Em hipótese alguma permitirei que me torturem com aquelas ceras diabólicas usadas pelas mulheres até em partes que, Deus me guarde, só de pensar sinto um frio na espinha. Tem que ser muito cabra macho pra se depilar com cera quente, e isso eu prefiro deixar para a minha esposa, que tem cabelo nas ventas e, obviamente, um bilhão de pêlos a menos no corpo do que eu.
A solução do momento atende pelo singelo nome de aspirador de pó. Aliás, de pó ele não vai sugar é nada, porque a proporção por aqui anda de um grão de poeira para cada peruca do Zacarias formada por aglomerados de pêlos. Ainda assim, espero que o coitado não se engasgue com tamanha cabeleira e, pelo menos, dê conta de transformar a minha casa num ambiente menos "pelegoso", uma vez que pretendo comprar um tapete pronto ao invés de formar um com os cabelos de minhas pernas e braços. As visitas, certamente, agradecem.

2 comentários:

  1. Hehehehe!
    Ri muito desse texto, bruxo!
    Coitada da Dani, que tem que limpar o chão com todos esses pelos...

    Abraço, Cláudio

    ResponderExcluir
  2. Vou engasgar de tanto rir. Cara, periga o piso pegar piolho é? A coisa é bem feia mesmo. rs

    ResponderExcluir

<< >>