A cruz que salva


Certas manhãs de domingo reservam um pouco mais do que o clima ameno de descanso familiar que o fim-de-semana pode proporcionar. Hoje, por exemplo, sinto-me no dever moral de dividir com o caro leitor a experiência pela qual passei originada a partir de um fato aparentemente simples, mas que poderia ter feito toda a diferença e, por que não dizer, modificar a história evolutiva da raça humana.
Neste feriado comemorativo da pátria, a Dani e eu viajamos para visitar os pais dela, na distante cidade de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina. Pensem em extremo oeste: a cidade fica um pouco depois. Pois bem, por aqui os campeonatos futebolísticos ocorrem de maneira bastante organizada, ao que meu sogro joga na modalidade dos veteranos. Por lá, assim como no Rio Grande do Sul, os quarentões também jogam nas manhãs dominicais, ao que despertamos cedito para torcermos pela vitória do time do sogrão.
Enquanto Santa Catarina perde tempo com a campanha pífia do Figueirense na primeira divisão, ou mesmo do calvário que enfrentam Criciúma, Joiville e Avaí na série B - algum fanático ainda mencionaria a Chapecoense no limbo da terceirona - mal sabe este povo barriga verde que o melhor de tudo em termos de futebol acontece nos confins do oeste do Estado. Mal pude acreditar na oportunidade ímpar que a vida me dava quando vi entrarem em campo os escretes de SERRANO e GRÊMIO GUAMIRIM.
O palco da partida localizava-se no que posso chamar de algo que fica logo após o fim do mundo. Entramos numa estrada de chão e desandamos a descer de maneira tão íngreme, que por um momento cogitei a possibilidade de o jogo ser disputado no centro da Terra em um campo coberto de magma e boa dose de calor. A Linha Dois Irmãos, comunidade que acolheu o embate entre os veteranos, deve ficar uns dez quilômetros adiante de onde São Judas perdeu o juízo; as botas e as meias o traíra certamente perdera bem antes.
Diante daquele honroso espetáculo que se aproximava, resolvi deleitar-me com o cenário e analisar os detalhes do embate. O time do meu sogro, Serrano, apresentava como destaques o lateral-esquerdo PARAGUAI, um careca cabeludo que imediatamente me fez recordar o saudoso Raul Cortez (veja a foto AQUI); um candidato a vereador na articulação que usava a camisa com o número alusivo ao seu partido político; e o camisa dez, apelidado nada criativamente de Pelé, só que branco. O pai da Dani joga de volante, protegendo a zaga com ferocidade e botinaços, tal qual faço à frente da zaga do Calixto. Isto me leva a crer que a herança genética que um possível filho homem meu e da Dani venha a herdar o leve, futebolisticamente, a ser algo entre Dinho, Cocito e um BÚFALO. Do lado dos donos da casa, o glorioso Grêmio Guamirim, não consegui visualizar nada mais bizarro do que o goleiro que media menos de um e sessenta de altura, cuja primeira atitude ao adentrar o gramado foi acender um cigarro.
Logo que o juiz apitou o início da partida, o Serrano perdeu seu principal atacante por lesão, entrando em seu lugar o centroavante AVELINO, um senhor já na casa dos cinquenta anos. Diante de tantas curiosidades num mesmo jogo, passei a temer que acontecesse algo que marcasse minha vida para o resto da eternidade.
De qualquer forma, o jogo prosseguia de maneira sagaz, à base de muitos balões, algumas investidas ilegais de Paraguai pela esquerda, uma bolada que meu sogro levou na GLOTE e os inúmeros erros cometidos por Avelino, provando claramente o porquê de ele ter começado na reserva. Enquanto isso, o goleiro DIRLEI, do Serrano, berrava com insistência na tentativa de orientar o time, mas tudo o que conseguia era fazer alguns comentários hilários, do tipo "como é que pode um cara de trinta e oito anos perder pra um velho de sessenta!", ou "mas hoje o Luiz tá matando a gente!".
De repente, sem mais nem menos, Paraguai triscou a mão na pelota dentro da área ao dominar um lance aparentemente tranquilo: pênalti. Cheguei a pensar que meu pé frio se manifestaria em minha primeira vez assistindo ao time de meu sogro jogar, mas para nossa sorte o cobrador mandou a bola na ROMÊNIA e o placar permaneceu inalterado. De relevante, o primeiro tempo ainda teve apenas um impedimento assinalado por mim, que coagi o bandeirinha a marcar dada a proximidade que este estava da tela. Os jogadores do Guamirim tentaram protestar, ao que rapidamente servi um chimarrão e fingi desconhecer a infração marcada como se fosse um jogador de BADMINTON perdido naquelas terras próximas do nada.
Antes de o segundo tempo começar, notei que a neblina ficou densa e, de uma hora para outra, o que era o prenúncio de uma manhã ensoladara tornou-se absolutamente gélido. Com dez minutos de partida, a chuva anunciou-se de maneira abrupta, fazendo com que recolhêssemos as cadeiras e procurássemos abrigo na sede da comunidade, onde já encontravam-se dezenas de gringos bebendo cerveja preta da marca BELCO. Ao ver aquele rótulo na garrafa enquanto Avelino perdia mais uma bola fácil, creio que as entidades do futebol esgotaram sua paciência e, às nove e meia da manhã, o dia virou noite. Escureceu de tal maneira, que a anunciação do caos foi questão de segundos. Eis que desabou um toró d'água violento, fazendo o sertão virar mar em minutos e compelindo o juiz a paralisar a partida antes que a tempestade se agravasse.
Mesmo assim, nada mais podia ser feito para aplacar a ira de São Pedro, que mandou para a terra um verdadeiro dilúvio acompanhado de ventania e granizo. Psicopatia e caos tomaram conta dos habitantes da comunidade, que olhavam com horror para o que ocorria do lado de fora do ginásio. Então, eis que surge um gaúcho a cavalo portando um berrante atravessado na garupa, o que me fez ter a certeza de ser um cavaleiro do apocalipse vindo anunciar o juízo final.
Até aquele momento eu estava tranquilo, mas devo confessar que temi pela sobrevivência terrestre quando o granizo começou a chover DENTRO do ginásio, ao que já não se sabia mais como disfarçar o temor pelo fim dos tempos. A chuva caía de maneira inconteste, alagando tudo e todos, ventando com a força desmedida que prenuncia um tornado e juro que vi um velhinho caminhando em direção à porta enquanto entoava alguma oração benzedeira de tormentas.
Diante da reza do Nono, tive uma epifania que me deu a certeza de poder contribuir de alguma forma para salvar toda aquela gente que já rangia os dentes a cada lufada de ventos que assombravam até a alma dos mais otimistas. Recordando a crença de minhas avós, concluí que só haviam duas maneiras eficazes de se dar fim a uma tormenta ameaçadora: queimar ramo bento ou fazer cruz de sal. Como o aguaceiro impedia que algum fogo sobrevivesse a tempo de incinerar um raminho abençoado, pedi que a Dani fosse à cozinha e fizesse uma cruz de sal para aplacar a ira das entidades raivosas. Chegando lá, minha esposa deparou-se com uma cozinheira nervosa que tentava um momento de distração lavando saladas, ainda que fosse para o banquete final de nossas vidas. Ao montar a cruz salina num pires, há quem diga que a cozinheira converteu-se e um facho de luz piscou no céu iluminando a redenção dos justos.
Deu certo, felizmente. A chuva continuava forte e alguns relâmpagos ainda troavam no céu, mas ao menos a impressão apocalíptica deixou os semblantes do povo. Pasmo fiquei eu ao olhar pela janela e ver que o juiz e os jogadores adentravam o campo novamente, ainda que a chuva seguisse alagando tudo. Talvez para esnobar a drenagem do gramado, voltaram todos com os corpos encolhidos à medida em que sentiam a chuva fria bater com força.
Não consegui distinguir em que lance o jogo reiniciaria, mas o cosmos parecia mesmo disposto a tornar a DEMÊNCIA o personagem principal daquele embate quando, sem nenhuma explicação plausível, vi a bola surgir dos céus e cair nos pés de Paraguai, que passou a correr pelo flanco esquerdo como se não houvesse amanhã. O jogo recomeçou assim, de maneira tresloucada e desafiadora. Notei que Avelino havia sido substituído, o que me dava a impressão de que haveria alguma salvação depois de um momento de incerteza acerca do fim do mundo.
A partida tomou ares de Gauchão, com muito contato físico, carrinhos no aguaceiro e bolas alçadas à área, concretizando a paralisação do eixo da Terra, que trouxe a Santa Catarina um pouco do futebol dos pampas e certamente desregulou o relógio biológico inclusive daquele senhor que bebia Belco na versão Malzbier em copos de extrato de tomate. Ainda houve tempo para a contemplação de um inacreditável gol perdido pelo Serrano, depois de o atacante dar uma meia-lua no goleiro e, ao concluir para o gol vazio, chutar duas vezes a mesma poça d'água e levar um troféu Mustela Putorius Furo encharcado de inaptidão plena. Ao ver aquilo, tive a certeza de que a partida terminaria em zero a zero, mesmo que se jogasse futebol naquele charco até a próxima quaresma.
Ao trinar o apito final, felizmente a chuva deu uma trégua. Exaurido de tanto navegar pela esquerda, Paraguai deixou o campo com o alento de ter sido escolhido por mim como o melhor em campo. Não se pode desprezar um lateral-esquerdo castelhano, careca e de mullets. Isto, moralmente, deveria dar a vitória ao Serrano, que certamente só não ganhou a partida porque não levou um cachorro para soltar dentro do gramado durante o jogo.
Foi uma experiência curta, porém intensa. Ao redigir cada parágrafo deste relato, orei em agradecimento pelo BRASILIT do telhado não ter voado nas rajadas de vento, pela cruz de sal ter funcionado em conjunto com a fé do Nono, que após o jogo apenas contemplava o horizonte na certeza de ter vencido mais uma batalha pela vida. A mim, restou um alento que carregarei comigo para o resto de meus dias: graças a Deus que não tem cerveja preta BELCO em Novo Hamburgo.

2 comentários:

  1. Não sei o que é melhor, os detalhes das suas histórias ou seu exagero Ton!

    Lá no fim do mundo, e no centro da terra?! Oh Deus! hahaha

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