Deus fez mais de uma costela - Parte II

Foi na maior das boas intenções que, quando combinei com meus amigos os preparativos para o nosso reveillón 2013, sugeri que assássemos um costelão doze horas. É esta tradição gaúcha e farrapa que pulsa em meu peito aliada à inclinação do meu paladar por uma costela gorda que me coloca neste tipo de situação. Mas, é como diz o adágio popular, de boas intenções o inferno está cheio. Além delas, lá também vive Lúcifer, o cramulhão, que, como vocês já sabem, tem lá seus motivos para torcer o nariz para churrascos assados em uma dúzia de horas.
Não vou, contudo, ser arrogante a ponto de simplesmente afirmar que o capeta sentiu o cheiro de fumaça nas ventas e correu para o litoral ávido por mijar na carne que tentei assar com tanto carinho. Seria uma inverdade afirmar isso sem motivos concretos. Vou, pois, listar a vocês os erros cometidos por mim que acabaram atraindo a atenção do capiroto para o nosso churras de Ano Novo.
Houve uma noite em que faltou energia elétrica no litoral, creio que tenha sido duas noites antes do dia 31 de dezembro. O diabo certamente andava quieto, acabrunhado num canto do inferno jogando canastra com a guria do Exorcista e pensando que mais um fim de ano chegava para atazanar suas lembranças. Enquanto isso, meus amigos e eu tivemos a infeliz ideia de acendermos uma fogueira na escuridão. Coisa mais linda aquela cena de filme americano, todos ao redor da pequena fogueira lépidos e faceiros curtindo a natureza. Que besteira! Foi um fumacê danado, deixou todo mundo defumado e ainda acendeu o alerta do velho Lúcifer para um possível costelão que viria a ocorrer.
Para quem acha isso pouco, é preciso que se mencione a gata preta. Símbolo de mau agouro, aquele bichano andava pela casa o tempo todo espionando nossos preparativos, na certa a mando do coisa-ruim. Tudo bem que a gatinha era o animal de estimação de nossos anfitriões, mas não podemos esquecer que desde que o mundo é mundo Lúcifer anda campeando costelões com seu gato preto a arranhar espetos e entoar o miado da discórdia.
O terceiro motivo surgiu na manhã de 31 de dezembro, dia do nosso tão aguardado costelão, quando contribuí outra vez para o chamamento do cramulhão. Como fui o último a acordar, tentei fazer uma média com meus compadres a fim de não virar alvo de chacotas matinais. Vesti minha pilcha a preceito, tapeei o chapéu na testa e adentrei a sala ao som de Veterano, clássico regional do conjunto Os Serranos, como forma de dar seriedade à lida que se aproximava.
Foi neste momento que o diabo perdeu não as botas, mas sim a paciência. Alisando seu bigode grisalho, picou fumo para um palheiro, encilhou uma mula-sem-cabeça e rumou para o litoral para cumprir sua missão. Um costelão em 31 de dezembro ao som de música gaúcha era demais para seu coração maltratado pela decepção de perder Eva, e a lembrança ficou viva demais para que aguentasse o tranco quieto.
Já nós, que contávamos as horas apenas no afã de saborearmos aquela costela ao fim de doze longas horas, sentamos pilchados ao redor do fogo de chão mais felizes que pintos no lixo.
É bom que se diga que até conseguirmos sentar e descansar, tivemos que parir uma bigorna para encontrar a maneira certa de posicionar a carne à beira do fogo. De serrote em punho, desatei a serrar forquilhas nos ciprestes do pátio enquanto os guris salgavam a carne e espetavam-na. O que ninguém viu foi que, durante aquela lida de principiantes na arte do costelão, a gata preta caminhava sorrateira pelo pátio. Cheguei a vê-la dando uma conferida no fogo e até achei graça da curiosidade do bichinho. Este meu coração mole de acadêmico de Veterinária sempre me complicando. O certo teria sido jogar água benta naquele bicho gritando rezas em latim até o capiroto dançar chula na fogueira, garanto que funcionaria!
Bueno, ficou a carne lá supostamente assando enquanto deliberávamos a respeito da vida e seus derivados. Entre os gaúchos, contudo, estava Popins: EL LOBO SOLITÁRIO. Para quem não conhece o contexto, explicarei brevemente. Num passado não tão distante, Popins era coroinha na igreja matriz de Novo Hamburgo, um rapaz casto, comportado e temente a Deus. Por diversas vezes, ele sacudiu aquela sineta na hora da consagração e aturdiu o capeta com o som estridente dos sininhos. Este mesmo Popins, muitos anos depois, estava sentado junto de nós contemplando o costelão e trajando uma bombacha pela primeira vez na vida. Além dela, portava também um chapéu muy gaudério e chinelas de couro. Mais um motivo para o cramulhão rilhar os dentes e babar sedento pela vingança.
As horas passavam e a previsão do tempo avisara que poderia chover. Foi neste momento que cometemos dois infortúnios que deram ainda mais linha para o capiroto urinar em nossa janta. Por volta da uma da tarde, de maneira completamente infame, armamos dois guarda-sóis (confesso não saber como escrever esta palavra após a reforma ortográfica) em cima do costelão. Um deles era roxo. Para quem passava na rua, o panorama não parecia muito animador.
Além disso, tivemos a infeliz ideia de organizarmos um campeonato de futebol no Playstation para passar o tempo. A estratégia era simples: enquanto dois jogavam, outros dois cuidavam a carne. O negócio é que com o capeta não se brinca e, curiosamente, a partir dali a gata parecia estar presente em todos os lugares para o qual eu olhava. Lembro bem de um momento em que eu enfrentava meu amigo Popins, El Lobo, numa das partidas do torneio, quando resolvi olhar para a cabeceira do sofá. Ali estava aquele bicho fitando meus olhos como uma esfinge. "Decifra-me, ou mijo na carne que assa lá fora", ela parecia sorrir com um dos cantos de sua boca felina e bigoduda. Mal dei bola para aquela rápida passagem e tratei de ganhar mais uma partida a fim de conquistar o título do certame ao fim da tarde, o que consegui com elogiável competência.
Ao longo do torneio, porém, a discórdia passou a ser disseminada entre nós. Cansado de perder e, mais que isso, levar constantes "sapeca neném" em seus confrontos, o anfitrião da casa deixou a competição aos berros. Leonardo, co-autor deste blog no longínquo ano de 2004, abdicou de suas partidas restantes em prol de duas doses de cachaça. Aliadas à quantia de cerveja que o rapaz já havia ingerido, logo tivemos o primeiro ébrio da tarde entre nós, e o que é pior, andando com a gata no colo e fazendo-lhe juras de amor. Era mais um ponto do cramulhão em seu torneio particular.
Os sinais se multiplicavam e somente nós não enxergávamos. Ao fim da tarde, a vizinha chegou em casa com a frente de sua caminhonete completamente esbodegada. Faltou água durante boa parte do dia. Léo fez dancinhas tresloucadas no meio da sala como se não houvesse amanhã enquanto gargalhava como uma gárgula com sarampo. Resolvi dar uma olhada na costela e um dos lados estava tão preto quanto aquele felino que o rondara tantas vezes durante o dia. A noite se aproximava e senti pela primeira vez que algo não estava conforme eu planejara.
A cartada final do insucesso veio através de uma visita e aconteceu de maneira bastante indireta. Os sogros de Cláudio, quarto elemento da nossa trupe de gaudérios assadores de costelão apareceram para nos visitar e apreciar nosso evento. Quando Gordo, o sogro, pôs o olho em nossa carne, sua vasta experiência churrasqueira não mentiu: o fracasso era questão de tempo. No entanto, uma gota de ética impediu-lhe de alertar os gansos e tudo o que ouvimos foi uma frase cujo conteúdo subliminar ecoará para o resto da eternidade em minhas lembranças mais remotas:

- O mais legal do costelão é a diversão com os amigos, ficar ao redor do fogo e curtir o momento. Mesmo que a carne não fique boa no final, a bagunça é o principal.

Estava decretada a nossa inoperância. Seus velhos olhos de lince não o enganaram diante daquele pretume que confundia a costela com os bigodes da gata, que a essa altura já havia abandonado o colo do Léo - que dormia no sofá sob efeito do álcool - e seguia vindo dar uma cheirada naquilo que imaginávamos que seria o nosso jantar de Ano Novo.
A certa altura, o sogro do Cláudio foi até o carro buscar algumas fotos de um costelão que havia assado com êxito. Quando ele abriu o porta-malas, o cramulhão faiscou seus olhos e deu o aviso. Nada deveria ser revelado. Hoje entendo aquele semblante preocupado quando nos mostrou as fotos. Era a ação do capiroto que já tomara conta do nosso singelo evento.
Caiu a noite e 2013 se aproximava a galope. As gurias já davam um jeito nos acompanhamentos quando resolvemos virar a costela. A ausência de luz do entardecer e a falta de conhecimento acerca da cor real de um costelão não tirou as esperanças de meus compadres quando deram de cara com aquela carne mais preta que Odvan, ex-zagueiro do Vasco. Foi difícil de manter a compostura, mas a partir dali passei a trabalhar com a hipótese de comer apenas salada de tomate e maionese na janta.
Passados pouco mais de quarenta minutos, foi a vez do cramulhão atingir meu compadre Cláudio, também conhecido em tempos antigos como Pastel. Com o estômago em frangalhos e seus níveis de ansiedade multiplicados exponencialmente, o rapaz colocou na cabeça que a carne estava pronta e passou a proferir palavras de ordem de dez em dez minutos. Era chegado enfim o momento de servir o banquete.
Resignado, apeguei-me a um grão de fé existente em meu coração. "Vai que essa carne ficou boa mesmo com esse aspecto repugnante", pensei. Todavia, minha esperança durou apenas o tempo de baixar a costela do espeto. É até difícil descrever o que ocorreu naqueles minutos intermináveis em que tentei, sem sucesso, cortar aquele pedaço de carne. Cláudio grudou num lado e o Léo acudiu com uma bacia. Consternado, percebi que tratava-se de uma verdadeira batalha final contra o capeta. Empunhei a faca e desandei a cortar como se não houvesse amanhã. A faca, no entanto, perdeu a visão e ficou cega. O tinhoso grudou suas unhas na graxa e o que se viu foi um panorama dantesco: gordura saindo de todos os lados, a carne de cor escarlate e eu suando em bicas como quem monta um potro xucro a campo aberto.
Os últimos sorrisos foram sumindo timidamente quando cheguei à mesa. Meu semblante era de um caudilho derrotado, meu rosto estava desfigurado e a incredulidade tomou conta dos presentes: a carne estava crua de um lado e preta do outro. Ninguém conseguia esboçar nenhuma reação, nem mesmo eu consegui naquela hora driblar o clima de velório e a única que ria por dentro era a gata, esparramada no sofá e esperando pelo desfecho daquela pitoresca passagem.
O primeiro a ser culpado foi o torneio de Playstation. Quando os primeiros habitantes do recinto começaram a recuperar a fala, Cláudio e Popins, ainda tímidos pelo embrulho que a cena de velório da mesa causara, relataram-me que nossas aventuras no video game haviam sido severamente condenadas por nossas esposas enquanto uma delas fritava um pedaço de carne crua na frigideira para poder jantar. Junto daquela gordura, queimava também minha reputação de churrasqueiro.
Para completar o circo dos horrores, faltou energia elétrica. Pude ouvir a risada sarcástica de Lúcifer, que àquela altura bailava um chamamé com a gata no escuro. O resumo da situação era mais ou menos o seguinte: dez da noite de 31 de dezembro, faltando duas horas para o reveillón, eu pilchado, defumado por doze horas de fumaça, suando, com uma barba de quinze dias por fazer e na mesa apenas um pedaço de carne com aspecto indefinido.
Foi a minha vez de rilhar os dentes. À luz da fogueira maldita que ainda queimava e iluminava a vitória do capiroto, peguei uma grelha, grudei a bacia com aquela carne empapada de graxa, empunhei novamente a faca cega e parti para a batalha final. Atirei a costela no fogo outra vez, só que em cima da grelha e ataquei a golpes vorazes de faca. Senti-me como Gandalf aos sopapos com o Balrog de Morgoth em O Senhor dos Aneis: as Duas Torres, só que de uma maneira ainda mais macanuda y peleadora. Parti para cima daquele pedaço de carne que emulava o tinhoso e descontei toda a minha raiva nas lascas de carne que consegui cortar. O capiroto foi valente, mas eu espumava de raiva e esfaqueei o bicho sem dó nem piedade. A cada pedaço que eu cortava, enfiava na boca e mastigava com ferocidade. Sim, comi aquele costelão, comi e gostei. Carne preta, crua, com gordura, nada mais importava a não ser a luta contra as labaredas de fogo que queimavam meus dedos e a indelével vontade de provar ao cramulhão que em briga de saci não tem rasteira.
Exausto e farto de tanto comer, fui para o quarto sem dizer muitas palavras e adormeci. Já estava conformado em entrar o Ano Novo com aquele fedor insuportável de fumaça, as mãos e o bigode mais engraxados que telefone de açougueiro, responsabilizado por estragar a janta de todo mundo, mas com o nobre sentimento de dever cumprido ao, pelo menos, ter mostrado para o capeta que nem com suas artimanhas seria possível me impedir de provar do costelão.
Por sua vez, o tinhoso deixou o recinto satisfeito, mas com os quartos doendo. Ele não esperava minha reação e teve de se retirar com o lombo marcado pela minha resistência. Com isso, a energia elétrica voltou, pude tomar banho e fazer a barba às onze e meia, a tempo de ainda brindar o Ano Novo. Por motivos óbvios, o brinde não foi lá essas coisas, todo mundo com sorrisos amarelos e certamente com as barrigas roncando de fome. A minha não. Com o orgulho ferido e a dignidade recuperada, tratei de iniciar as piadinhas e os trotes tradicionais das primeiras horas do ano, enquanto a gata ficou presa numa gaiola.
É fato que o capeta cumpriu sua missão e também saí desta passagem com as paletas ardendo, contudo as lições da vida servem para esculpirmos verdades inquestionáveis que servirão de ensinamento aos nossos netos: costelão doze horas em reveillón, nunca mais. Que vá para o diabo que o carregue.

2 comentários:

  1. Cara, demais o texto. O Cramulhão bem que tentou, mas tu não te rendeu e isso é o que importa. Quanto a ter estragado a janta de todos, isso não é problema. Foi como o Popins disse: "Se tivesse dado certo, não teríamos tanta história para contar...". hehehehe Abraço!

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  2. Eu vou ler isso por 20 anos e vou rir MUITO!!!

    Observações PERTINENTES:

    -> Já virou um HÁBITO te elogiar pelos textos. Brilhante o teu relato. É um orgulho muito grande ser teu amigo.
    -> Mesmo com o DETALHE do problema na carne ficou na minha mente uma grande virada de ano com amigos muito especiais!
    -> Eu ganhei DOIS torneios no Play enquanto ganhaste UM.
    -> MORRI pela primeira vez no paragrafo que me descreve e gostei de EL LOBO.
    -> MORRI nos links especialmente o do ODVAN!

    Um grande abraço!

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