Epifania da reconciliação

No ano passado, quando decidi enveredar para o caminho da medicina veterinária na vida acadêmica, intimamente eu sabia que travaria uma batalha contra a minha aversão a algumas disciplinas. Durante os idos do Ensino Médio, biologia e química não eram praias pelas quais surfava com naturalidade. Todavia, a universidade vem quebrando tais paradigmas e venho experimentando o doce sabor deste kissuco de pacotinho chamado conhecimento.
Minha última aula de fisiologia foi um exemplo clássico que ilustra esta afirmação. Após peregrinar por mais de uma década pela escuridão da ignorância, finalmente consegui entender o que é, por que ocorre e como funciona a osmose.
Cheguei cansado à sala de aula, uma vez que havia passado a manhã lidando com bovinos e imergindo meu belo corpo em porções consideráveis de excremento advindas diretamente das tripas das vacas. Com o macacão de serviço apresentando uma conformação verde capim, não foi difícil passar o resto do dia com as mãos fedendo a esterco.
A voz da professora, doce feito uma bala Mocinho (quem lembra?), embalou meus pensamentos e, escorado na parede, tirei uma boa pestana durante os primeiros minutos da explicação. Procurei, contudo, manter um grau mínimo de alerta a fim de registrar as atividades celulares sobre as quais a catedrática falava com tanta propriedade.
Lá pelas tantas, ouvi uma palavra que despertou minha atenção: osmose. Milhares de vozes vieram ao meu cérebro e passaram a entoar em coro um mantra que funcionou como uma terapia de regressão às vidas passadas. "Osmose, osmose, osmoseeeee", aquela palavra dita em baleiês desnorteou minhas faculdades mentais. Esfreguei o grão dos olhos, pisquei algumas vezes e tive a certeza de ter voltado ao ano de 2002, quando cursei o terceiro ano do Ensino Médio. Aliás, dizer que cursei é quase uma demasia. Até ia para o colégio, mas estudar não era tarefa das mais frequentes.
No efervescer da adolescência, não satisfeito com a matança das aulas, ainda arrumei encrenca com a professora de biologia. O banzé se deu por besteira. Como nunca prestava a atenção às explicações, avacalhei com as respostas de uma prova para descontrair um pouco. A mestra, no entanto, não teve o mesmo espírito esportivo e virou uma arara, chegando a comentar em outras turmas sobre a minha peripécia em tom de reprimenda. Os boatos correram e quando fiquei sabendo que meu nome rolava solto na boca do povo resolvi de querer ter razão achando uma pouca vergonha.
Discutimos de dedo em riste dentro da sala de aula, com a diferença que ela era a professora e tinha a razão em reclamar, enquanto que eu não passava de um fedelho metido à besta querendo ver o circo pegar fogo. E bem que pegou mesmo. Passei dos limites no meu palavreado e fui chamado à sala da vice-diretora. Levei uma escovada bonita no lombo e saí com as orelhas em chamas. Diante daquele panorama desagradável, optei por um protesto silencioso. Dormi em todas as aulas de biologia restantes até o fim do ano. Só fui aprovado porque colei como se não houvesse amanhã e ainda tive de suar a camisa para fazer a prova de recuperação com as calças na mão.
Dois ou três anos depois, um pouco mais maduro, reconsiderei minha postura errônea diante da professora e resolvi me desculpar. Como não poderia ser diferente, a atitude da mestra foi de uma elegância exemplar, apertamos as mãos, demos um abraço apertado e a vida seguiu seu curso normal. Mais que isso, ficamos amigos! Até hoje, cada vez que nos encontramos o papo é animado e deixa claro que não há mais ressentimentos biológicos entre a gente.
O problema é que não aprendi patavinas de biologia, nem a tal da osmose consegui entender. Foi aí que acordei na aula de fisiologia. Osmose, a professora estava explicando o bendito processo e a vida me dava uma nova chance de aprender. Concentrei toda a atenção na explanação. As frases entravam no meu cérebro, passavam pelo tálamo, hipotálamo, telencéfalo e todas essas áreas da massa cinzenta, costurando-se em minhoquinhas de saber, até que PIMBA! Aprendi. As trombetas do céu anunciavam a glória, os passarinhos dançavam nas arquibancadas e as luzes da ribalta focaram meu semblante emocionado. Depois de dez anos, finalmente compreendi a osmose.
Se pudesse, ligaria para minha professora de biologia naquele momento e relataria emocionado a fagulha do saber que iluminou meu cerebelo. Pediria para fazer uma nova prova de recuperação onde teríamos apenas uma pergunta: explique como funciona a osmose. Eu explicaria, tiraria um grandessíssimo dez e a geral do Grêmio faria avalanche diante do meu triunfo.
Como forma de agradecimento convidarei a mestra para o lançamento do livro. Não a de fisiologia, que foi apenas um instrumento da fé, mas aquela que me redimiu dos pecados lá no início do século. Hoje a biologia é minha amiga e nunca mais usarei o sarcasmo para responder qualquer questão de prova. Tomara que caia ao menos uma perguntinha sobre osmose na prova de fisiologia. Só uma. As trombetas soarão novamente.

Eu comemorando o conhecimento sobre osmose com gotículas de água para ilustrar.

3 comentários:

  1. Ri litros aqui, Antônio. Por coincidência do destino, ou não, eu também detestava biologia. Graças, tive essa matéria apenas no primeiro ano do ensino médio e logo me livrei. Não posso me esquecer que a professora era muito implicante com as poucas meninas da turma. Éramos 3 contra 27. Logo, além de detestar a tal da biologia, ainda tinhamos contra nós a exigência demasiada da professora, enquanto os guris corriam solto. Talvez eu até goste de biologia, mas a professora não ajudou muito, não.
    Boa sorte nos estudos! :)

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  2. Bah, encontrar a professora de biologia no lançamento do teu livro seria um momento típico para a expressão: "Que Momento!". hehehehe

    Ótimo texto!

    Abraço!

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  3. Odiava biologia. A única vez que tentei colar no Ensino Médio foi nessa matéria, e a professora me pegou no flagra. :/
    Depois até que simpatizei com a tal da biologia, mas, sou mais fã de outras áreas.
    Mas como não podia deixar de ser, um exagero de texto e de humor, roubando sorrisos da minha rotina.

    Abração Ton!
    (Osmose acontece no abraço?! :p)

    hahahahaha

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