O aluno pródigo

Hoje pela manhã, após alguns anos de ausência, voltei à escola onde estudei por quase toda a minha infância. Um misto de sentimentos invadiu meu peito ao andar novamente pelos corredores do Colégio Santa Catarina, instituição onde vivi a maior parte dos momentos mais marcantes da minha vida escolar. Eu até havia estado no colégio há dois anos quando fui convidado para interpretar Jesus Cristo (pasmem!) na Via Sacra que a escola organizou, porém naquela oportunidade não cheguei a trafegar pelos corredores.
Ao chegar na portaria, fui encaminhado para a disciplina para anunciar minha intenção de ir até a sala dos professores falar-lhes a respeito do lançamento do livro. Quanta ironia! Voltei ao balcão que tantas vezes frequentei por conduta imprópria, como morder a perna de um colega, roubar merenda do meu compadre Popins, cantar músicas sertanejas em voz MUITO alta nos corredores em horário de aula, ou mesmo arremessar ao chão as pipocas que o supracitado compadre havia levado para o lanche. Todas faltas leves, mas que me renderam alguns autógrafos no livro de penalidades. Mal sabiam aqueles que me condenavam que alguns anos mais tarde eu voltaria ali pedindo para dar novos autógrafos, só que de uma forma diferente.
Esperei a moça da disciplina atender as ocorrências do recreio de maneira plácida. Eram reclamações variadas relativas ao uniforme, outra queixa sobre má conduta e um gurizote querendo algo que não consegui identificar, pois estava fitando atentamente aquele bando de dedos-duros entregando seus colegas bagunceiros e lembrando das possíveis acusações que o Popins teria feito contra mim nos episódios que envolveram comida.
Fui encaminhado à sala dos professores finalmente. Ficava no mesmo corredor de dez anos atrás, mas no lado oposto. Identifiquei o burburinho da massa catedrática deliberando animadamente em seu precioso intervalo, dei uma batidinha na porta e entrei. A primeira professora que vi foi Arlete, que lecionava História e Geografia no Ensino Médio. Precisei conter uma vontade impulsiva que tive de dizer "profe, hoje eu sei que a capital do Nepal é Katmandu, podemos rever minha nota naquela prova?", ao passo que logo outros mestres vieram me receber de maneira muito agradável. Não pude deixar de perceber uma certa expressão de pânico numa professora de exatas - não revelarei a matéria e nem o nome, agora vivemos tempos de paz - que provavelmente pensou "ferrou, ele voltou para se vingar".
O ápice dos minutos em que estive naquela sala veio quando todos silenciaram para que eu tomasse a palavra. Mesmo com toda a minha facilidade em oratória não pude deixar de tremer na base diante daquela inusitada inversão de papeis: uma década depois, os professores estavam quietos para ouvir o que eu tinha a dizer. Agora venham me dizer que postes não mijam em cachorros e terei de levantar dúvidas acerca da sabedoria popular.
Expliquei a iniciativa do livro e divulguei o lançamento, fazendo o convite a todos os interessados e frisando o quanto ficaria feliz pela presença de cada um. Aos poucos, vi brilharem os olhos daqueles que foram meus mestres na infância e por consequência também fiquei emocionado, uma vez que este tipo de situação representa ao mesmo tempo a evolução dos tempos e o resgate das origens. Fui recebido na casa que ajudou a me formar como cidadão com a mesma educação que recebi quando saí de lá para conhecer o resto do mundo (que no meu caso vai até Minas Gerais, e olhe lá).
Senti falta, no entanto, de uma professora em especial. Perguntei por ela e disseram que possivelmente estaria em sua escola particular onde dá aulas de reforço, que fica bem em frente ao colégio. Atravessei a rua e fui até lá. Professora Schirley, quem conhece sabe o peso que este nome representa para quem estudou no Santa Catarina nos últimos quarenta anos (!). Ela mesma afirma que tem mais anos de escola que muitas freiras de lá.
Batemos um longo papo, fiquei quase uma hora e meia conversando a respeito de tudo um pouco. Porém, em meio às histórias que contávamos um ao outro não pude deixar de recordar mais uma das minhas peripécias em aula. Não tive coragem de contar ao vivo, por isso venho aqui fazer minha confissão no blog, esta ferramenta que me ajuda a purificar meus pecados há mais de oito anos.
Certa manhã, tínhamos uma prova cabeluda de História com a Shirley. Eram verdadeiros calhamaços de questões dissertativas e todos passávamos trabalho para decorar toda a matéria. Como nossas aulas dividiam-se nos períodos antes e depois do intervalo, a professora resolveu fazer uma revisão no primeiro período e aplicar a prova somente após o recreio.
No entanto, ela estava muito rouca, quase afônica. Sua voz saía em fiapos e a turma do fundão praticamente não ouvia nada do que ela dizia. Diante daquilo, a solução foi a professora posicionar-se no meio da sala para que todos escutassem o mínimo possível. Já estávamos com as classes enfileiradas para a prova, de modo que fiquei colado ao quadro-negro. À minha esquerda estava Michael, e logo ao seu lado a mesa da professora dava sopa com todas as provas à vista.
Nem é preciso dizer a ideia que tive. Comecei a sussurrar para ele que pegasse uma prova e guardasse escondida sob sua mesa. Ora, teríamos vinte minutos de intervalo para conhecermos as questões e salvarmos nossas notas! Todavia, Michael era um santo de candura, um cidadão pacífico e de conduta ilibada. Poderia até ser papa. Michael I, que tal? Precisei usar de todo o meu poder de persuasão e uma boa dose de insistência para convencê-lo a cometer o delito. De repente, com o reflexo de um leopardo, o papa Michael I transfigurou-se em Michael Dedos Leves (lê-se "Maicoul", pra ficar mais parecido com bandido de faroeste) e passou a mão numa prova atirando-a tão rápido sobre a minha mesa que quase me atrapalho todo para guardá-la. Enfim, nossa nota de História estava salva!
O que nós não planejávamos era que a notícia se espalhasse pela turma tão rapidamente. Mal a professora saiu da sala ao sinal do intervalo e uma multidão de colegas pulou sobre nossas classes feito um bando de hienas famintas disputando o último pedaço de carne podre das savanas africanas. Foi uma cena dantesca, destacaram as folhas umas das outras e aqueles minutos de intervalo viraram uma verdadeira luta pela sobrevivência. Quem queria saber alguma resposta precisava acotovelar-se entre os bolinhos para copiar algo com extrema dificuldade. Eu, que não sou filho de pai bobo, tratei de enfiar meu nariz onde podia e consegui garimpar boa parte da prova. Lembro bem de uma questão sobre a Pedra de Roseta, decifrada de maneira competente por Jean-François Champollion, em 1822. Essa tenho certeza que acertei.
Ao fim do intervalo, as folhas tomaram rumos desconhecidos, todos voltaram aos seus lugares e lá reencontrei o pobre do Michael bufando de brabo. Naquele entrevero medonho, o vivente não conseguiu copiar uma respostinha sequer, ficou a seco. Vi brotar de seus olhos o clamor da injustiça, a decepção pelo não reconhecimento de seu ato de coragem absoluta em sacrificar a sua pele por colegas desalmados que não foram capazes nem de lhe soprar quem decifrou a Pedra de Roseta. Ainda assim ele demonstrou sua inteligência ao conseguir uma nota parecida com a minha, que girou em torno de oito.
Vendo a professora conversar tão animadamente comigo quase parei de joelhos e confessei nosso erro suplicando-lhe o perdão. Sei que ela perdoaria e daria boas risadas, mas a verdade é que não quis expor meu colega. Optei por esconder a verdade agora aqui revelada única e exclusivamente em nome da reputação de Michael, bravo herói daquela manhã que salvou tantas médias em História. Não fosse por ele eu confessava, juro que sim.

Tarefa indigesta decifrar essa pedra... É bom esse Champollion, heinhô Batista!

7 comentários:

  1. Duas Grandes professoras!

    Shirley e Arlete!
    Possuidoras do conhecimento, temidas pelos alunos que não vêem a importância dessas disciplinas para nosso futuro.

    ResponderExcluir
  2. Confesso que sinto falta dos tempos de Santa... Era uma época boa...

    Meu bruxo tá virando celebridade... hehehhe

    Abraço!

    ResponderExcluir
  3. Eu sempre lia "Chapolin" quando via o nome desse cara, huashusahusahusauhsa

    Reencontrar-se com as situações dos velhos tempos é algo sempre memorável; pra ti ainda mais, que consegue fazer o que faz com as histórias que conta :)

    Abração!

    ResponderExcluir
  4. AHAHAHAHA peripécias de Ton na escola, essas eu queria conhecer. Mas olha, fico feliz por saber que tu está passando por um momento de vida super legal e que essa volta à escola foi boa. É bom relembrar os velhos tempos e também admirar o quanto as coisas mudaram, principalmente quando são para melhor.


    Beijo, Ton!

    ResponderExcluir
  5. Nos últimos tempos, tenho tentado não remoer muito a vida em nostalgia. Todavia, impossível não relembra (com a saudade e o carinho de praxe) dos bons tempos de Santa.

    Nada melhor que tu para trazer tais referências de um tempo bom como aquele.

    Sucesso e um abraço deste primo velho!

    ResponderExcluir
  6. Ai, Antônio! Eu que passei 9 tortuosos anos no Santa (+1 plus por conta do Magistério) emocionei com tua narrativa! Por conhecer cada centímetro daquele lugar, consegui visualizar a cena toda em direção à Disciplina e Sala dos Professores...

    Passei bons tempos naquela escola, que me formaram como cidadã e o mais especial de tudo, como cristã.
    Obrigada pelas lembranças que me trouxe à tona!

    E ah!
    God save The Shirley!

    Um beijo!

    ResponderExcluir
  7. O Santa foi a melhor época da minha vida! Foi lá que eu conheci meus grandes amigos e que me tornei a pessoa que sou hoje.
    Se pudesse voltava no tempo. :)

    ResponderExcluir

<< >>