A vingança nunca é plena

Acabo de recordar uma passagem macabra da minha infância. Ainda essa semana estava refletindo acerca da escassez de fatos curiosos dos meus tempos de criança, constatação que me deixou profundamente chateado. Estaria o meu repertório de passagens inusitadas rumando para o seu fim? Seria a derrocada da minha curta, porém intensa carreira?
Aí, lembrei das maldades que fiz ao Jucélio. Isso foi lá no início dos anos noventa, época da pré-escola. Tenho até vergonha do que relatarei a seguir, pois retrata o que de mais pútrido carrega meu passado carrasco, contudo tenho o dever moral, como vocês já sabem, de vir aqui e fazer deste blog meu confessionário particular. Devo admitir que o farei com certo receio. Mais adiante todos entenderão.
Bueno, o Jucélio era um aluno da minha mãe, como eu já disse, na pré-escola. Eu até estava escalado para fazer parte daquela turma, porém mamãe ponderou que seria melhor que eu não fosse seu aluno para evitar qualquer burburinho que levianamente apontasse para um certo favorecimento à minha pessoa. As más línguas dizem, não se sabe bem o quê, mas elas dizem, inventam, fuxicam. Vivemos no país da fofoca. Antecipando-se a isso, passei a estudar noutro colégio.
Ainda assim, voltimeia aparecia na escola onde minha mãe era professora para algumas visitas furtivas. E lá estava o Jucélio, um gurizote de estrutura física avantajada em relação aos demais e, a bem da verdade, um baita de um valentão. Danado uma barbaridade, abusava de seu tamanho para praticar a violência contra seus coleguinhas indefesos. Se não estou enganado, o vivente também tinha lá seus percalços no aprendizado. Não vou adjetivar de outra forma para não me taxarem de preconceituoso e talicoisa.
Apesar de ser o rei do pedaço e fazer chover para cima maltratando a gurizada, o Jucélio se borrava nas calças quando me enxergava. Vale lembrar que, além de ser mais novo, meu tipo físico infantil conferia a mim um porte de garnizé, ou seja, um anãozinho de meia tigela. Ainda assim, ele preferia ver o capeta pintado de ouro do que cruzar comigo pelo pátio.
Isso ocorria porque eu judiava do pobre. Vá lá que era uma questão de justiça, mas admito que não sei se fazia pelo instinto de Robin Hood, ou se por peraltice mesmo. Fato é que eu fazia gato e sapato do Jucélio, que mais parecia uma ave pernalta quando corria pela escola em disparada enquanto eu lhe aplicava puxões de cabelo, socos, pontapés e todo o tipo de achincalhe. A turma, naturalmente, achava aquilo o máximo: o valentão da turma tinha medo do nanico, uma reedição escolar de Davi e Golias.
A mãe, coitada, ficava entre a cruz e a espada. Por um lado, seu instinto justiceiro regozijava ao ver aquele projeto de bárbaro pagando seus pecados pelas mãos de nossa família representada por mim, que caprichava nos petelecos a cada visita surpresa; em contrapartida, precisava reprimir meus atos de vandalismo juvenil, já que violência gera violência. Mesmo porque, se numa daquelas o guri se revoltasse, certamente faria guisado de mim. Mas, não, isso não acontecia nunca. Era pau no Jucélio, e ele por sua vez descontava a raiva nos colegas depois que eu o deixava em paz.
Certo dia, comemorei meu aniversário na escola. Outra visita surpresa, fico imaginando o pavor do meu alvo quando enxergou minha figura apontando no portão. Porém, como era dia de festa, não pratiquei nenhuma maldade física contra ele. Fiz pior. A mãe comprara umas máscaras de bichinhos para que eu distribuísse aos amiguinhos na hora da diversão. De pronto, determinei que o Jucélio ficasse sem máscara, ele não merecia! Chamaram-me num canto, conversaram ao pé do ouvido comigo e me convenceram a não excluir o pobre. O bullying ainda não era difundido na época, mas já se sabia a diferença entre o certo e o errado, isso existe desde que o mundo é mundo e a danada da cobra convenceu Eva de morder a maçã. O resto da história todos conhecemos.
Passados alguns minutos de conversa e tomado pelo meu bom humor de aniversariante, resolvi dar uma máscara ao Jucélio. Contudo, meu sarcasmo atingiu níveis escabrosos quando enfiei a mão no saquinho e tirei de lá a máscara de sapo. Aquela fora a escolhida para o rapaz. Juro pra vocês que sinto um arrependimento bruto quando olho para a foto daquela festinha e vejo o Jucélio esguaritado num canto com cara de anfíbio. Pior ainda, ficou faceiro em ganhar máscara! Gente, isso me corta o coração em mil pedaços. Como eu era sórdido, deusolivre!
Pois é, mas o tempo passa e com ele as lembranças ficam esquecidas pelo caminho. Alguns anos depois, já adolescente, andava pela rua bem belo e faceiro quando encontrei um ex-colega daquela época. Chamava-se Paulinho, o filho da dona Verena. Não sei por que cargas d'água veio o assunto daquela época e, em tom de alerta máximo, ouvi do amigo uma notícia bem desagradável:

- Cara, o Jucélio até hoje quer te matar! Ele diz que quando te encontrar na rua vai te dar uma surra de levantar vergão!

O tom do Paulinho fora incisivo. Eles seguiram sendo colegas durante vários anos e, segundo seu relato, o Jucélio guardou uma mágoa federal da minha pessoa, não esquecendo em nenhum momento de todas aquelas atrocidades que cometi e jurando vingança a quem quisesse ouvir. Tardou, mas a revolta brotou em seus olhos e a situação ficou periclitante pro meu lado.
E minha vida no bairro era aquela coisa, andava sempre de consciência limpa, já esquecido daquele passado condenável o qual, sinceramente, julgava que tivesse morrido com a infância. Não para o Jucélio, que ainda carregava as chagas do sofrimento muito vivas em sua mente. Fiquei apavorado com aquele relato do Paulinho e passei dias andando na rua todo espiado, dobrando cada esquina com o fiofó na mão de medo de encontrar meu algoz empunhando um porrete pronto para me afofar os dentes.
Foram dias muito sérios aqueles, é chato ter a liberdade posta em xeque por atos infantis. Rezei para que Deus levasse o perdão ao coração do Jucélio e, claro, me livrasse de levar uma sumanta de laço daquele brutamontes que já na infância fazia a turma sofrer em suas mãos. Felizmente, tive a sorte de não cruzar nunca com ele naquele estado colérico que o Paulinho narrara.
Em virtude disso, contei-lhes essa passagem com certo receio. Vai que o Jucélio tem perfil no Facebook. Vai que ele me acha e promove o tão anunciado acerto de contas. E se ele não esqueceu da humilhação pública de ganhar uma máscara de sapo? Céus, são questionamentos que faço inconscientemente e que perturbam minha mente. Onde quer que ele esteja andando errante neste mundo, torno público meu pedido de desculpas. Perdão, Jucélio. Perdão!


Gente amiga, esta foi mais uma produção "quemomentista" publicada por mim neste blog. No entanto, a querida da Maria Fernanda resolveu de criar um concurso onde as pessoas devem escrever um texto que contenha esta minha característica escrachada de narrar os fatos. Todos que quiserem participar podem tomar mais informações diretamente com ela clicando AQUI, e terei imenso prazer em ler as criações dos interessados e escolher, de maneira isenta, a que eu mais gostar. O vencedor da promoção ganha um exemplar do meu livro, o Que Momento!, devidamente autografado. Participem! 

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