O menino tubarão

Mamãe é meu genuíno oráculo de passagens da infância. Fico até encabulado de iniciar um texto com tamanha obviedade, uma vez que ninguém poderia saber mais detalhes sobre minhas histórias de guri do que aquela que carregou-me em seu ventre durante nove exaustivos meses. Mais que isso, me deu à luz de parto normal. Arrebentei suas entranhas e mesmo assim ela me ama, toda mãe é mesmo um anjo na Terra.
Aliás, admiro efusivamente toda mulher que ganha um bebê de parto normal. Minha bisavó, por exemplo, teve dezesseis filhos dessa forma, imaginem a fibra que possuía a velhinha. O esquema era à moda São Bento: um fora e um dentro. Mal dava tempo de voltar tudo ao seu devido lugar e já vinha outra criança - entre elas meu avô - para dilatar as partes suas partes baixas outra vez. Bobagem é espirrar na farofa.
Todavia, não estou aqui para debater o estado calamitoso da genitália da bisavó que nem cheguei a conhecer, vamos deixar que ela descanse em paz e continue como uma estrelinha brilhando no céu após parir quase duas dezenas de vezes entre as décadas de 20 e 40. O acontecido que relatarei nada tem a ver com nascimentos. No máximo uma luta doidivanas pela sobrevivência, mas as semelhanças param por aí. O causo vem do tempo anterior ao fim das farofadas (que você pode ler AQUI), quando ainda veraneávamos em família nas praias gaúchas, tempos áureos de minha tenra infância.
Naquele época, criança era que nem gato, tinha sete vidas. A gente crescia meio teatino, enfrentando as intempéries da vida à la cria, fincando roseta nos pés e achando bonito. Isso significa dizer que nós, crianças crescidas sem internet, desenvolvíamos métodos um tanto rudimentares que auxiliavam na eficácia da sobrevivência que acontecia na rua, onde tudo era de verdade e não um bando de imagens na tela do computador (por mais 3D, 4D e reais que sejam virtualmente as de agora).
Na praia o buraco era ainda mais embaixo, pois havia a vilania do mar, aquela imensidão salgada engolidora de criancinhas desatentas. Pelo menos era o que diziam os mais velhos. O jeito era se virar nos trinta e ser mais ligeiro que o oceano, quem sabe bebendo uns goles de água saloba vez ou outra, mas nada que servisse para algo mais sério do que matar as lombrigas e resultar numa diarreia que limpasse bem as tripas.
Entre um banho de sol e outro pela parte materna, entre uma caipirinha e o futebol moleque da parte do pai, de vez em quando eles acompanhavam a gente pro bem de ninguém parecer menor abandonado. Não que meus pais fossem negligentes, mas o fato de não os termos em constante vigilância também reforçava a criação no melhor estilo "pelo duro" forjada à base de encontrar soluções para alguns problemas daqueles que entram para o rol dos formadores de caráter.
Ainda assim, nunca se está livre do perigo mesmo no alento de uma presença genitora. Lembro que, naquela vez, peguei na mão de mamãe e adentramos o mar para refrescarmos os mondongos. Como já disse, o medo naqueles tempos não era tão premente, então partimos faceiros para uma fundura razoável enquanto dávamos barrigaços nas ondas fortes que constituíam uma baita aventura.
Numa daquelas, porém, o inesperado aconteceu. A onda veio forte demais a ponto de soltar nossas mãos e aí a situação ficou brasina pro meu lado. Foram segundos de pavor, fui arrastado pela força da maré em direção à praia como uma prancha inerte de isopor, só que por baixo d'água. O recurso foi sair tateando a esmo numa luta desesperada pela sobrevivência, trancar a respiração e torcer para o anjo da guarda não estar em horário de almoço. Cerrei os olhos como quem não quer ver a morte de perto e segui movimentando os braços feito um polvo mutilado de apenas dois tentáculos, que no caso seriam meus ágeis bracinhos.
Lá pelas tantas, finalmente consegui agarrar alguma coisa. Parecia firme, ao que julguei ser a salvação eterna e, sem titubear, grudei as unhas com força e dali não soltei nem a pau. Mal sabia eu, no entanto, que se tratava da perna de uma velha banhista que também refrescava suas pelancas trajando um discreto maiô preto. Ao sentir o ataque submarino, a velha desandou a berrar tresloucadamente como quem sofre um ataque fulminante de uma criatura marinha e assassina.
Parou a praia, pensaram que a velha tava passando daquela para melhor, foi um escândalo. Quando a onda baixou, porém, o que se viu foi a minha figura de bochechas esturricadas e olhos esbugalhados como quem escapara da morte por um triz, talvez uns vinte metros à frente de mamãe, que na certa ainda nem processara direito o acontecido tamanha a rapidez.
Estando a salvo, fui socorrido pela mãe, que assim como o restante dos praianos também ria da situação pitoresca enquanto a velha desculpava-se pela celeuma com uma cara de quem comeu xis sem maionese:

- Ai, pensei que fosse um bicho... - suspirou a senhora já demonstrando um certo alívio pelo pouco estrago que minhas unhas causaram em suas varizes.

Não recordo, sinceramente, de qualquer trauma que tenha ficado após aquele mergulho forçado e misturado a um naco de adrenalina. Bonito mesmo é ver as gargalhadas que mamãe dá quando relata o episódio, admitindo que naquele período ser criança era realmente uma atividade que exigia algumas habilidades dignas de MacGyver, Indiana Jones e até mesmo Chuck Norris. Aprendi, afinal, a enfrentar certos perigos que no máximo deixaram algumas cicatrizes e, com efeito, algumas crônicas para a posteridade. Que maravilha aquele tempo em que merthiolate ainda ardia!

Não sou eu, obviamente. Mas poderia ser.


PS: A quem gosta de histórias da minha infância, indico também a passagem do Jucélio AQUI. Postei esses dias e ninguém comentou nada, o que considero de uma indignidade tremenda.

PS²: A quem gosta de todas as minhas histórias, sejam da infância ou não, indico o meu livro. Basta acessar a aba "Contato" no menu superior e já acertamos o brique! Corre lá!

1 comentário:

  1. A pobre da velhinha já tinha esquecido o que era ter alguém pegando em sua perna, por isso o susto. hahaha.

    Beijo!

    ResponderExcluir

<< >>