Timbre de Galo

Dia desses, numa daquelas conversas sobre futebol que mais parecem a discussão do sexo dos anjos, resolvi desafiar um amigo colorado. Sabia que era uma manobra arriscada e que corria o risco de ser desmoralizado diante de todos, mas ainda assim fui audacioso. Intimei-o a relatar, do goleiro ao centroavante, a escalação do Internacional campeão da Libertadores de 2010, o bicampeonato vermelho da América.
Não vou dizer o nome do rapaz, mas é leitor deste humilde recinto. Diante do desafio ele corou, tremeu a passarinha e tropeçou já no lateral-direito. Citou Ceará, quando na verdade era Nei, ídolo colorado de uma geração. Foi um prato cheio para nós, gremistas, prosseguirmos com uma sonora desmoralização de um torcedor que sequer sabe o nome de seus heróis.
Se alguém me propõe o mesmo desafio, respiro uma vez só e emendo: Danrlei, Arce, Adílson, Rivarola, Roger, Dinho, Goiano, Arílson, Carlos Miguel, Paulo Nunes e Jardel. Faz tempo, é bem verdade, mas tenho essa escalação na ponta da língua, todo gremista que se preze tem, é parte do folclore do futebol saber o nome de onze guerreiros que levaram seu time à glória, ainda que o grupo contivesse alguns reservas que também ajudaram na caminhada. Ainda assim, a escalação titular é o suprassumo da conquista.
Bueno, mas chega de dupla grenal, pois o que me levou a escrever estas linhas foi o Atlético Mineiro, ou melhor, a entidade mística que este clube incorporou a partir da classificação frente aos mexicanos na Libertadores. O Galo é um escrete de renegados sulistas. Lá está, por exemplo, Ronaldinho, desprezado pelo amargor gremista. O dentuço gaudério é aquela mulher que arrumou as malas e abandonou o relacionamento para casar com um gringo e aprender outros idiomas, enquanto o maridão desolado chora as pitangas eternamente por ter sido trocado sem nem um mísero "vá à merda". A despeito disso, um craque que está fazendo chover para cima em Minas Gerais dentro dos gramados. Tem o meu respeito e o meu perdão.
Também singram por lá outras canoas furadas, vide os casos de Jô, Victor, Richarlysson, Pierre e Alecsandro. Dois centroavantes execrados pelos desmandos colorados, um deles afeito aos encantos da noite; um lateral/volante cuja polivalência é posta de lado diante do preconceito pelos seus sorrisos largos demais e seus trejeitos de gesticulação um tanto exacerbada. Já o Pierre, sei lá, tem cara de atrasado por natureza. Isso sem falar no técnico Cuca, marcado a ferro no peito pelo estigma de perdedor e chorão. A premissa básica dos últimos trinta anos é que todos os jogadores renegados terão como destino o Atlético Mineiro, clube considerado infértil pela escassez de títulos que faz qualquer jejum parecer uma mísera Sexta-feira Santa.
Por último, há Victor, o goleiro amarelão. Já li várias opiniões dizendo que o arqueiro não combinava mais com as cores do Grêmio e que o clube fez o certo em vendê-lo em troca do perneta Werley, zagueiro que supriria uma posição carente no Olímpico. Fiquei sabendo sobre a venda de Victor durante uma viagem para Santa Catarina à casa de meus sogros. Liguei o rádio no noticiário esportivo noturno e a surpresa era anunciada como furo de reportagem: Victor era do Galo.
Senti, naquela hora, um misto de alívio e dor de cotovelo. O Grêmio alçou Victor à fama nacional trazendo-o da reserva do invisível Paulista, de Jundiaí, para ser também uma opção no banco de suplentes. O titular, que nessas alturas já nem lembro quem era, machucou-se por dissabores do destino e lá estava Victor pulando mais que rã na chapa quente com suas defesas magistrais, levando inclusive pavor aos gremistas numa partida diante do Veranópolis onde chocou-se com o adversário e lesionou o rim. Os torcedores, carentes de um ídolo após a saída de Danrlei, viam no guarda-metas uma possibilidade forte de redenção sob as traves.
Vestindo o manto tricolor, Victor pegou pênaltis, operou milagres e chegou à Seleção Brasileira, feito que orgulhava os gremistas. No entanto, esbarrou na falta de títulos, na incapacidade de vencer D'Alessandro em clássicos e na alcunha de pé frio concedida pela sordidez da imprensa. A saída de Victor dividiu opiniões, mas o destino não deixava dúvidas de que ele estava rumando para o clube certo: Galo Mineiro, celeiro dos renegados.
Ainda que com saudades do nosso ídolo, essa era a impressão que eu tinha deste goleiro até o pênalti diante do Tijuana na Libertadores. Assisti à partida de soslaio, com isenção e sem interesse, mas com um naco de inveja como se estivesse rolando ali uma festa para a qual não fui convidado. Intimamente, costumo torcer por ex-jogadores do meu time, então naturalmente torcia pelo triunfo dos mineiros nas figuras de Réver, Ronaldinho, Gilberto Silva (mesmo que no banco) e do próprio Victor.
Quando o beque Leonardo Silva cometeu aquele pênalti bisonho, recordei a massaroca de Cris em plena Arena, aquele coice desgranido que tirou o Grêmio da competição. Foi como sentir a mesma dor pela segunda vez, tive compaixão dos torcedores do Galo, da minha amiga Ana Flávia Sousa que, até hoje, nunca viu seu time ser campeão de algo maior que uma pífia Copa Conmebol, irmã mais velha da também extinta Copa Mercosul e da caçula Sul-Americana. Porque foi uma campanha brilhante esta do Atlético, que deu de relho no imponente São Paulo, temido noutros tempos, mas que agora serve apenas como efeito de comparação para goleiros que se adiantam em pênaltis.
Pois, naquela penalidade máxima, a mística do futebol sofreu uma inversão de valores. Todos os brasileiros naquela hora tiveram a certeza da desclassificação, pois, ora, tratava-se do Atlético Mineiro com Victor no gol e Cuca no banco de reservas, uma espécie de maldição ao cubo. Ainda assim, parei o que estava fazendo para assistir ao tiro de misericórdia, enquanto meu coração murchava porque o Brasil não teria nenhum representante entre os quatro melhores da América.
Veio a batida e o pé canhoto de Victor escreveu seu nome na história da Libertadores. Milhares de frases de louvor invadiram o Facebook, narradores e comentaristas pareciam incrédulos diante daquela cena e, talvez ainda descrentes do que ocorrera mesmo após o apito final, não houve atleticano que resistisse ao choro copioso da redenção. Victor mostrou que foi mais um a levar consigo um naco da imortalidade gremista embora e talvez aí esteja explicada a falta de títulos do tricolor gaúcho que, ao que parece, perdurará ainda por algumas gerações.
Para aqueles que gostam de falar em campeão moral - termo este criado oportunamente em 2005 - já podemos dizer que o Galo alçou este posto na Libertadores de 2013. Pode até ser que não vença, pois Newell's e Olimpia já mostraram que são ossos duros de roer e o Santa Fé, bem, os colombianos nós gremistas ainda conservamos os vergões no lombo. Ainda assim, o Galo merece. Quando me dei conta, estava de braços erguidos comemorando como um legítimo torcedor atleticano. Foi como levar uma tropilha de bois refugos à Expointer e vê-los ganharem o primeiro prêmio. Rasgando todas as falácias, o Atlético incorpora a partir de agora a mística e carregará consigo a lança magna que lhe confere a força suficiente para tomar a América e adentrar de vez o rol dos desbravadores do continente.
Com isso, o torcedor do atleticano finalmente terá a oportunidade de bater no peito e escalar seu time campeão de Victor a Jô, passando pelos outros nove soldados que juntos darão a vida em campo para conquistarem a taça. Será no mínimo emblemática a queda deste inóspito tabu de time que nada vence desde a primeira edição do certame nacional na ultrapassada década de 70. A mim, como gremista, nada mais resta senão vibrar com o triunfo dos nossos antigos jogadores. O Atlético me representa na competição. Daqui até o final da Libertadores, tenham certeza, sou Galo até a morte!



3 comentários:

  1. Até simpatizo com esse time do Galo mas torcer para o time do Ronaldinho Gaúcho para mim é o mesmo que torcer para o time do BELZEBU. (NS). Por isso na semifinal vou torcer para os LEPROSOS (Newell's).

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  3. AAAAAH ANTÔNIO AUGUSTO BRAGANÇA DE ORLEANS DUTRA FILHO JUNIOR!!!
    Claro que a foto do nosso herói Victor foi o que mais me chamou a atenção, porque, juntar o meu time do coração com o seu talento, só eu sendo uma completa amiga desnaturada para não ler.
    Ano passado estávamos nós dois, choramingando porque nossos times do coração andavam mal das pernas (tá, faz tempo que o galo não anda, engatinha, enfim), e com o passar dos meses, vimos justo nossos dois times no alto da tabela do Bralileirão! Ironia, destino, fé, não sei!
    Sei que eu, atleticana há 22 anos graças a família materna, vovó e vovô (que tinham vinil com músicas do Galão), vi, pela primeira vez, meu time, meu time tão querido, bem das pernas! hahahaha
    Sabe como é, torcedor atleticano torce contra o vento, torce demais, ama demais sofre demais, e não há nem espaço pra querer títulos, amar o time gastava tempo e energia demais. Até que.
    Até que o time dos renegados ressuscitou uma porrada de gente, trouxe o Gaúcho baladeiro, buscou lá do outro lado do mundo o Tátátátardelli de volta, até Gilberto Silva , meu vizinho de cidade, resolveu aparecer lá no terreiro do Galo.
    Não dá pra explicar a sensação de torcedora quinta feira.
    Meu coração simplesmente parou por uns segundos, e desde aquele dia, já vi e revi o penalti trezentas vezes, e todas, exatamente em todas, meu coração dispara. Não sei explicar amigo, só sei que é um amor que cresceu comigo, e mesmo não conseguindo diferenciar o impedimento (na teoria eu sei lindamente, na prática, não aceito. Azar do outro time ué, que não tem jogador lá na frente poxa).
    Só sei que achei linda a sua última frase!
    Só sei que meus tios vão te amar quando vier dia 29!
    Só sei que será ainda mais bem vindo, depois de ser "Galo até a morte". ;)

    Demais Ton! Demais!

    Abração.

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