Ser amigo não é artificial

Ultimamente, tenho andado um tanto reflexivo no que diz respeito às relações humanas e na forma como me comporto diante delas. Desde sempre fui um sujeito falante, extrovertido e agregador. Gosto de ver as pessoas felizes, faceiras, aprecio a diversão e a convivência pacífica. Ainda que preze pelos momentos de solidão - justamente para refletir sobre as questões existenciais -, não abro mão de estar sempre rodeado de gente. É o que deixa a minha vida com o ar de plenitude.
E essa mesma vida, danada que é, gosta de provocar boas surpresas o tempo todo. Vejam vocês que, durante toda esta semana, fui para um curso de inseminação artificial em bovinos com alguns colegas da faculdade. Podíamos erguer os pés para cima e desfrutarmos do ócio das férias, mas não: a medicina veterinária traz consigo certos gostos que fazem com que queiramos o envolvimento com a lida o maior tempo possível.
A cidade onde fizemos o curso chama-se Arroio dos Ratos. Até que, se analisarmos o Google Maps, não fica tão distante de Porto Alegre, são pouco mais de sessenta quilômetros até lá. No entanto, o sítio para onde fomos fica no interior de Arroio dos Ratos, o que significa dizer que, após o fim do mundo, vira-se a primeira estrada de chão à direita e ainda dá pra andar mais uns bons dois ou três quilômetros. Judas perdeu as botas bem antes...
Some-se isso ao fato de eu ser cliente da Tim. Olha, é tenso. Meu telefone não tem sinal nem aqui em casa, que dirá no meio do nada. Tentei em vão por dois dias fazer contato com minha esposa, dar um sinal de vida, ao que acabei desistindo. Até pensei em queimar umas jaquetas para emitir sinais de fumaça, mas logo percebi que precisaria delas por outro fato simples que contarei no parágrafo a seguir.
Fez um frio de tremer a passarinha em Arroio dos Ratos. Aliás, gelou tudo que foi canto, pelas poucas notícias a que assistimos pela televisão (pelo menos isso tinha por lá). Nevou no Paraná, em Caçapava e, perdão pelo palavreado, mas deve ter nevado até na puta que pariu, o que confere dizer que gelou geral. Enquanto o Papa saboreava um chimarrão em pleno Rio de Janeiro - e aí vocês calculem a friaca que chicoteou a metade sul do Brasil -, batíamos queixo literalmente com o vento minuano que judiava de nossos pobres corpos e, por que não dizer, até mesmo nossas almas.
Liguemos, portanto, os pontos: lá estava eu no meio do nada, aprendendo a inseminar vacas em bretes onde o vento batia sem dó nem piedade. Tinha tudo para ser a indiada do século, uma semana pavorosa e traumatizante. Pois é, tinha. Só que a roda girou para o outro lado.
Da nossa faculdade, fomos numa turma de dez pessoas. Além da primeira dezena, vieram outras seis pessoas de lugares diferentes. Juntando o professor à tropa, éramos dezessete pessoas que transformaram cinco dias gélidos de curso numa das semanas mais divertidas de que se pode ter ideia.
Obviamente, eu poderia discorrer aqui acerca de um sem-número de piadas internas engraçadíssimas que embalaram nosso pequeno confinamento. No entanto, a graça não seria a mesma e tornaria meu relato bastante restrito à turma. Ainda assim, em meio a jogos de pife, truco, canastra, comparações ao Big Brother, rodas de mate, violão, imitações do Zacarias e cérvix de vacas, é preciso que eu faça uma avaliação mais criteriosa do que lá vivemos.
Não creio em acasos de forma alguma. Se as coisas acontecem na vida de um determinado jeito, é porque assim quis o destino. Acredito firmemente que cada passo da minha jornada tem o propósito único de me fazer aprender a lição certa na hora certa.
Dito isso, lhes afirmo que, hoje pela manhã, na hora de ir embora, bateu uma bruta tristeza ao constatar que a semana chegara ao final. Não pelas brincadeiras, não pelo curso em si, mas pela oportunidade única de passar cinco dias longe da civilização apenas aprendendo um pouco mais sobre convivência, histórias de vida diferentes, adquirir experiências e até mesmo a desconectar-se por completo do todo para prestar a atenção aos pequenos detalhes.
Nosso ritmo atual é este que bem sabemos: conexão total e irrestrita com tudo e todos ao mesmo tempo. Porém, dentro deste contexto imensamente global, onde é que realmente estamos? Ontem, enquanto folheava um jornal velho sozinho ao lado do fogão à lenha, li uma coluna de Zero Hora que tratava exatamente disso, o que aumentou ainda mais a minha epifania em relação à importância deste período ao lado das mesmas pessoas sem nenhuma outra forma de comunicação externa.
Por mais que estejamos ao lado dos mesmos amigos diariamente, cada vez mais o contato é superficial. Conversamos enquanto mexemos no telefone, batemos papos diferentes com três, quatro ou até mais indivíduos ao mesmo tempo, mas dificilmente dura o suficiente para estreitar os laços. Naquele curso, no entanto, foi possível conhecer a vida de cada um, havia tempo disponível para tal. Este mesmo tempo que escasseamos tentando diariamente fazer tudo de uma só vez.
E é assim que a convivência, naturalmente, traz consigo o apego. Passamos a admirar a simplicidade das pessoas, os gostos em comum, a gargalhada sincera e a brincadeira pouco elaborada. É possível dar e receber um elogio sem pressa, sorver um chimarrão com calma e dar corda ao assunto sem que o relógio coordene quanto tempo deve durar. No meu caso, sendo eu um vivente que não paga imposto para trovar fiado e construir uma amizade, conhecer melhor toda aquela gente foi um bálsamo. Fiquei ainda mais próximo daqueles que já conhecia, mas sempre trocando um aceno apressado nos corredores da faculdade. De quebra, ganhei novos parceiros de lida campeira. Gente simples, correta e buenacha.
Dentre eles, o Eduydes. Pronuncia-se "eduÍdes", com acento no i. Por mais que este relato não transmita o que significou este nome durante os cinco dias, uso o exemplo dele por representar a essência do sentimento que nossa turma criou. Quando o professor chamou o nome do Eduydes na van, ninguém se manifestou. Aquele colega de nome estranho estava ausente. Porém, depois descobrimos que o dito cujo havia partido para o sítio no mesmo carro das malas, e lá topamos um vivente meio xucro, calado e até meio desconfiado.
Aos poucos, até pelas brincadeiras óbvias que se criaram em torno da nomenclatura pouco usual do rapaz, descobrimos a personalidade do gaúcho de Santo Antônio da Patrulha que conquistou a galera e, por unanimidade, foi eleito o vencedor do nosso reality show improvisado. Até então, nenhum de nós conhecia o nome Eduydes. Daqui para frente, porém, fica como marca registrada de uma trupe que aprendeu bem mais do que inseminar vacas artificialmente.
Deposito nestas linhas o meu carinho pelos dias de convivência que tive com cada um naquela casa. E aqui, porca miséria, surge o grande paradoxo de toda a reflexão que fiz até este momento. Ao mesmo tempo em que a vida nos propicia experiências insubstituíveis, é inevitável que as pessoas sigam suas vidas e partam para lados distintos seguindo suas rotinas. É assim na escola, na faculdade, na vida profissional, em tantos lugares pelos quais trilhamos. São passagens necessárias para o nosso crescimento, bem sabemos. Contudo, de tudo o que vivi até hoje, o único aprendizado que ainda não consegui assimilar é justamente a maneira certa de lidar com despedidas. Por isso, registro aqui o meu apreço por estes amigos como forma de eternizar dias bastante felizes e amenizar as inevitáveis distâncias.


0 comentários:

Postar um comentário

<< >>