Para Vó Dilma

Este é provavelmente um dos textos mais difíceis de construir dentre todos os que já produzi até hoje. Fiquei alguns bons minutos com a tela em branco, o cursor intermitente e a cabeça repleta de ideias desconexas tentando organizá-las de forma que façam algum sentido. A dificuldade aumenta ao passo que minha produção textual não vive um bom momento. Sinto preguiça quando penso em escrever. Os temas que porventura pareçam interessantes num primeiro momento fogem da mente como a areia esvaída por entre os dedos quando pega em punhados. A impressão que frequentemente tenho é a de que estou enferrujando.

Chega a ser engraçado escrever um parágrafo como o acima haja visto o seu tom melancólico, quando na verdade minha vida respira bons ventos como talvez não tenha acontecido nos últimos dez anos. Prestes a adentrar o time dos quarentões daqui a três anos e pouco, o Antônio que hoje redige essas palavras raciocina, percebe e vive de forma praticamente antagônica ao adolescente que criou este blog em 2004 e parecia existir aos pedaços, sempre faltando uma peça. Hoje, formado, casado, pai de três filhos (Teodoro vem aí, falaremos disso noutro momento), muitas coisas que antes pareciam indecifráveis agora são tão mais fáceis de lidar, que nem sempre uma reflexão escrita soa como algo cabível.

De qualquer forma, as pessoas gostam. Os amigos pedem: Antônio, escreve mais. Eu tento. Inicio vários textos, alguns na cabeça, outros aqui no teclado, mas a imensa maioria morre na praia. Meus dedos confundem as teclas, a destreza está longe de ser a mesma ao digitar, fico irritado com tantas correções e, querem saber? Desisto. Já quis apagar o blog muitas, muitas, muitas vezes. Todavia, algo sempre manteve a chama acesa e impediu o sepultamento definitivo do meu amado bloguinho.

Precisei de três parágrafos para construir a deixa para o tema de hoje. Há um mês, partiu uma das leitoras mais ilustres que o Que Momento já teve. Personagem de crônicas, frequentadora assídua do blog, entusiasta dos meus escritos, a pessoa que me alfabetizou utilizando os gibis da Turma da Mônica. No dia 28 de março, por volta das 17 horas, recebi a notícia do falecimento da Vó Dilma, tantas vezes aqui mencionada e, arrisco a dizer sem medo de errar, uma das poucas pessoas que provavelmente leu todos os meus textos à exceção deste e dos próximos que virão.

A morte em si não me incomoda. Tanta gente tem partido neste período de pandemia, que de forma nefasta acabamos assimilando com indigesta naturalidade o alto número de falecimentos. Além disso, aos 82 anos, de certa forma era esperado que em algum momento chegasse a vez dela. Fisicamente minha avó era uma pessoa extremamente sofrida. Sedentária, obesa por muitos anos, fumante, tinha nos livros, na televisão e na internet seus hobbies. A cabeça era um supersônico, mas a estrutura corpórea padecia.

Muito pior que as dores do corpo, porém, foram as dores da alma. Não vou entrar em detalhes porque trata-se da vida de uma mulher que não está mais aqui para argumentar (e ela por sinal adorava fazer isso), mas posso dizer que minha avó sepultou três dos seus cinco filhos, uma chaga que lhe dilacerava dia após dia, a ponto de por muitas vezes fazê-la suplicar a Deus que acelerasse um tão esperado reencontro. Fora isso, tantas outras ranhuras judiavam de seu velho coração que há trinta dias parou de bater.

O brabo de não ter mais a Vó Dilma, tirando uma série de particularidades que provavelmente só conseguirei resolver à base de terapia, é o tanto de coisas que morreram junto com ela. Todas as datas de nascimento, de morte, de casamento, de acontecimentos aleatórios que só ela sabia. Falava o dia, o mês e o ano. Sabia o nome completo de pessoas distantes. Contava qualquer história com requinte de detalhes. Não raro, inventava alguns pormenores que em sua narrativa adquiriam notável verossimilhança.

Morreu com ela o melhor feijão do mundo. Imbatível, inconfundível e incomparável. Quem provou sabe. O feijão da Vó Dilma era famoso entre os meus amigos, dava vontade de comer puro, tinha gosto de refeição completa. Escorando o queixo com as mãos, ela observava orgulhosa a minha voracidade servindo, repetindo, entupindo todos os espaços do meu corpo até que não conseguisse mais me mexer, de tanto comer qualquer acompanhamento com aquele feijão maravilha (aqui uma mensagem subliminar à nossa vertente noveleira, característica que puxei dela).

Morreu uma das caligrafias mais desenhadas que conheci. Uma memória privilegiada quando jogava Stop, principalmente em cores, flores e marcas de cigarro, tudo isso num tempo em que não existia Google. Minha professora de canastra, que me deixava ganhar porque eu só tinha 5 anos quando aprendi a jogar. Pintora de panos de prato, leitora de toda a coleção de romances Bárbara Cartland, bordava ponto-cruz, assinava revista Contigo!, assistia à toda a programação da Globo, do Vídeo Show até a minissérie que passasse após a novela das oito. Isso tudo são coisas que eu recordo da minha infância, vocês podem notar que muitas sequer existem mais. E sei que você vai jogar "Bárbara Cartland" no Google. Risos.

Muitas coisas foram embora naquele caixão e nunca mais voltarão. Quando morre uma pessoa, também uma série de particularidades singulares chegam ao seu fim. E é a saudade de tudo isso o que mais maltrata a mim, que permaneço aqui agora somente com um bocado de lembranças. Estas, por sua vez, sumirão do mundo no dia em que chegar a minha vez. Mesmo que registradas, porque uma coisa é contar, mas outra totalmente diferente é ter vivido in loco. É aí, meus amigos, que reside o busílis de como é triste a partida de uma pessoa querida e sua história.

Bueno, é bem verdade que nem tudo reside na tristeza. Há o legado, há o que fica, características que puxamos e levamos adiante. Como por exemplo a música que ela cantava para eu dormir, isso há três décadas:

"Sereno, ôi cai, ôi cai
sereno deixa cair
sereno da madrugada
não deixou meu bem dormir

Minha vida, ai, ai, ai
É um barquinho, ai, ai, ai
Navegando nas ondas do mar!

E o Juninho, ai, ai, ai
Vai dormir, ai, ai, ai
Um soninho bem lindo da vó..."


O Juninho, no caso, era eu. Antônio Dutra Junior, vocês sabem. Agora eu canto para os meus filhos essa música e, obviamente, coloco o nome deles no lugar que já foi meu. Fiz isso com a Lara, faço com o Santiago e farei com o Teodoro, o bisneto que ela não chegará a conhecer. Essa música, inclusive, cantei para a Vó Dilma em 2008, quando ela teve uma infecção generalizada e quase adiantou sua partida. Em coma, toda inchada e desenganada pelos médicos, cheguei no seu ouvido e cantei a música bem baixinho... uma lágrima escorreu do canto de seu olho. Semanas depois, quando acordou, ela dizia que havia sonhado com uma voz cantando pra ela, fato este que fê-la voltar da escuridão para um caminho de luz. Se você está lendo isso e ficou arrepiado, imagine eu.

De algum lugar, junto de seus filhos, do meu avô Gentil e de toda a família, uma cambada de parentes falecidos dos quais ela sabia nome, sobrenome, árvore genealógica, data de nascimento e de morte, espero fervorosamente que haja uma forma dela ler este texto e perdoar meus momentos de ingratidão como neto. A verdade é que escrevi esse texto tanto para ela, como também para mim. Uma forma de homenagear e reconhecer a avó chorona que eu tive e que me leva às lágrimas nesse momento por entender algumas desventuras da vida de forma amarga, talvez a pior forma possível. Vai ser difícil continuar, mas, se ela conseguiu ir tão longe, tenho certeza de que também terei a mesma capacidade. Um beijo, vó!

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