Dudu

O despertador do celular tocou às seis e quinze, como todos os dias. O mesmo ritual matinal de pegar o xampu quase que sem olhar, a toalha no varal e dirigir-se ao banheiro. A água do chuveiro exercia o papel efetivo de espantar o sono e iniciar o dia de fato. Após o banho, uma rápida espiada no jornal, ao passo que preparava o leite com Nescau. Notou a diferença somente quando lembrou que não precisaria da mochila, pois não almoçaria no trabalho.
O nervosismo que antecedeu o pedido de liberação para o chefe fora em vão. Mais do que uma resposta positiva, o patrão apoiara sua iniciativa, considerando até interessante. Errara ao julgá-lo mal. De fato, não haveria maiores problemas em faltar uma manhã, ainda mais em se tratando de uma causa nobre. Não tinha porque temer a repressão de seu superior.
Desembarcou do ônibus e não precisou esperar o segundo, que o levava para o serviço todos os dias, seguindo diretamente para o local marcado com todos os outros. Aos poucos, chegava gente de todos os lados, trinta e cinco no total. Pensativo, apenas cumprimentava com a cabeça aqueles que lhe dirigiam uma saudação qualquer. Sabia que teria com quem conversar durante a viagem, pois uma amiga também fazia parte do grupo de voluntários. Logo ela chegou, e ele quebrou o silêncio.
Enquanto o ônibus deslocava-se para Porto Alegre, conversavam animadamente, pondo os assuntos em dia, já que não se encontravam com freqüência. Intimamente, porém, os batimentos cardíacos aceleravam a cada quilômetro rodado. Havia decidido não doar sangue, pois estava mal alimentado, o que o fez lembrar a primeira vez em que doou de estômago vazio. O semblante desesperado da enfermeira chamando a colega, enquanto sua visão embaralhava, mesmo com ele afirmando que estava tudo bem. Segundo a moça, ficara mais branco do que uma folha de papel. Não seria legal passar por um novo vexame, definitivamente.
Ainda assim, havia o exame de compatibilidade de medula. Toda a esperança de uma vida em seu início depositada dentro de um pequeno tubo de ensaio com alguns mililitros de sangue. Nem conhecia o pequeno Eduardo, tampouco havia lido sobre seu caso no jornal, já que as espiadas no início da manhã continham atenção suficiente apenas para a página dos esportes, única que espantava o sono. Contudo, soubera do caso através de amigas, que explicaram a gravidade do caso. Segundo no Brasil, sexto no mundo, o que urgia pelo maior número de doadores possível, em busca de uma medula compatível.
Enquanto preenchia a ficha no laboratório, sentia o coração pulsar na veia do pescoço. Tum-tum, tum-tum. A pequena onomatopéia o lembrava o primeiro pensamento que o levara a decidir fazer o exame: a figura do irmão, com seus áureos nove anos, tão inteligente e tão ingênuo ao mesmo tempo. Pensava então no menino à espera de uma salvação para sua vida, tudo isso com apenas quatro meses de existência. Não se conformava em saber que, ao contrário do maninho, uma criança corria o risco de não poder correr na rua, jogar bola com os amiguinhos e todas as outras traquinagens típicas da infância. A vida prega mesmo muitas peças.
Sentou-se placidamente na sala de espera, aguardando pela sua vez. Seguia conversando com a amiga, mas o pensamento voava longe. Queria ver o bebê, fitar seus pequenos olhinhos, dar o indicador para que ele grudasse firme com sua mão pequenina, como o irmão fazia quando era recém-nascido. Quando isso acontecesse, sentiria com vivacidade que haveria compatibilidade entre seus sangues, tornando-o responsável direto pela continuidade de uma jornada que não poderia terminar tão cedo.
Um misto de expectativa e angústia tomava conta dos seus sentidos. Um por um, todos eram chamados, e ele permanecia sem escutar seu nome. Estático, observava a televisão que, sem volume, mostrava um coral africano que cantava em qualquer programa matinal de fofocas. Tentava adivinhar a música, bater o pé num ritmo que não sabia qual era, ler os lábios dos cantores, sem sucesso. Às vezes, a vida entoa melodias que não conseguimos escutar.
Enfim, foi chamado. Trêmulo, sentiu-se muito próximo do desconhecido Eduardo. Dudu, como o chamaria quando se encontrassem para que ele conhecesse seu doador. Sonhava com isto, com o momento em que não seguraria as lágrimas ao receber a notícia da compatibilidade. A convicção e a fé de doar-se por aquele menino abafaram a modéstia que, por sinal, não lhe era muito característica normalmente. Mais do que um pensamento pretensioso, a imensa vontade de ajudar era o que movia cada passo em direção à sala da coleta.
Tinha veias fartas no braço direito, abria e fechava a mão para que elas saltassem tanto quanto pudessem. Perdera totalmente o medo da agulha. Aliás, por via das dúvidas, olhou para o lado contrário quando a enfermeira passou o algodão com álcool no braço.
A picada não foi sentida. Esquecera da dor, para concentrar-se unicamente no sangue que a seringa sugava, quase conseguindo escutar o barulho das hemácias locomovendo-se. Apertou o algodão com força, enquanto a mulher enchia os pequenos tubos de ensaio. Para ele, dois tubos. Para Dudu e seus pais, a esperança de ver a vida brotar com saúde e todas as alegrias e peripécias que um filho proporciona.
Inspirou profundamente e estufou o peito, sentindo-se um mártir. Saiu pelo corredor com o semblante aliviado e a sensação de dever cumprido. Saíra da teoria que tanto pregava de ajudar o próximo, para a prática de efetivamente mudar o mundo ao seu redor com um pequeno, mas significativo gesto. Mal sabia que, através daquele pequeno ato, uma vida já estava salva naquele dia: a sua.

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