Boca livre

Não sei quanto a você, mas, falou em comida de graça, falou comigo. Não há nada mais saboroso do que empanturrar-se sem tirar um único centavo do bolso. De iscas de caviar a arroz com feijão, tudo vira uma delícia, pelo simples fato de ser gratuito.
Podem chamar de avareza, como quiserem. Somem à gula que me é peculiar, e teremos aí dois pecados capitais que eu ostento sem nenhuma hipocrisia. Como diz o ditado, de graça, até injeção na testa.
Eis que ontem tivemos uma apresentação do coral num leilão beneficente organizado pela primeira-dama de Novo Hamburgo. Aqui pra nós, mas primeira-dama serve só pra organizar frescuras. É impressionante a pompa desses eventos, eu fico todo deslocado, parecendo um caipira andando de escada rolante pela primeira vez na vida.
Gente da alta sociedade fala com a voz suave, sem excessos, porta-se com garbo e elegância, parece até que têm uma placa de cimento nas costas para manter a coluna ereta. Já nós, os varzeanos, falamos alto, somos espalhafatosos, damos gargalhadas homéricas, enfim, parecemos um bando de gansos tomando banho na lagoa, é uma algazarra sem igual. Pois é, no coral há alguns dessa espécie, na qual me incluo solenemente. Foi só meu faro canino detectar que havia petiscos e acepipes, que a boca já começou a salivar, e fitei incisivamente a bandeja do garçom, que, compadecido daquela minha cara de cachorro em frente ao açougue, disse: “já trago uma pra vocês”.
Deus do céu, que manjar inigualável! Atraquei-me naqueles salgadinhos feito uma piranha quando cai um boi no rio. Dentadas e mais dentadas, aquela mastigada “joga pra um lado, pra outro e engole”, pra não dar muito tempo do estômago enjoar, e dê-lhe comilança. No entanto, cinco minutos após o garçom nos servir, eis que a moça do microfone chama o coral para cantar duas músicas.
Bom, vocês não têm noção do que foi a cena. Imaginem umas vinte pessoas levantando de boca cheia, limpando os dentes às pressas, engolindo pastelzinho de camarão inteiro e bebendo goles de refrigerante na corrida para liberar a voz. No meio da segunda música, me veio um pedaço de camarão que estava estrategicamente guardado atrás de um pré-molar, e parou no meio da língua. Que agonia! Na primeira respiração que consegui puxar, mandei o danado para o estômago de uma vez por todas.
Terminada a apresentação, nos avançamos novamente na segunda remessa de delícias, o que garantiu a minha janta para os próximos dois dias. Logo começou o desfile das peças do leilão, quando percebi que realmente fazer parte da alta sociedade de Novo Hamburgo não é uma tarefa barata. Bolsas com lance inicial de 190 reais, pra não falar nuns absurdos de trezentos e lá vai pedra. O cara compra uma bolsa daquelas pra namorada, e nunca que vai guardar dentro dela a quantia de dinheiro que pagou.
Sem falar nas roupas, né. Uns modelos que a gente pode procurar na cidade inteira, que não encontra uma só pessoa usando algo parecido. “Couro plissado”, ora, faça-me o favor, nunca vi alguém usando isso para algo diferente de tapete de carro, ou forro de chinelos. Mas, como gosto não se discute, preferi ficar quieto e apenas arregalar os olhos cada vez que ouvia os preços absurdos dos lances iniciais, ainda mais para quem tinha miseráveis cinco reais na carteira.
Saindo do leilão, fomos ao Centro de Cultura assistir à apresentação de Natal do coro do Jader, com a orquestra de sopros. Infelizmente, chegamos um pouco tarde, mas ainda deu tempo de, no final, alcançarmos a ... boca livre! Sim! Na saída do teatro, eis que me deparo com bandejas e mais bandejas de merengues, junto com vasilhas de vidro abarrotadas de morango. Valha-me Deus, nem eu sabia que gostava tanto de morangos, ainda mais gratuitos! Devo ter comido uns trinta, ao mesmo tempo em que descobri que morango é minha fruta favorita. Pelo menos ontem foi. O fato é que ontem a janta foi um primor, que me levou, inclusive, a comer apenas um singelo sanduíche hoje no almoço, tamanha a fartura da minha refeição noturna do dia anterior. Mas, como infelizmente a fome retorna depois de um tempo, preciso me contentar com a lembrança daquela montanha de salgadinhos, merengues e morangos, que ficarão na minha lembrança como um dia gastronomicamente perfeito. Portanto, se alguém aí souber de uma boca livre por perto, não titubeie e me avise!

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