Contradança

Há momentos na vida que são exuberantes e inesquecíveis. Não falo de feitos heroicos, tampouco de realizações notórias e dignas de veiculação no Jornal Nacional – agora abrilhantado pelo garbo jornalístico de Patrícia Poeta. Falo dos momentos individuais, daquela conquista própria, onde cada pessoa vence seu limite particular e colhe os louros em silêncio, longe dos holofotes.
Com o advento do You Tube, nada mais precisa ficar em segredo. De um cachorro dançando can-can até a insólita masturbação do Ronaldinho Gaúcho, tudo pode ser jogado no ventilador e partilhado com o resto do mundo. Isso, contudo, é recente, muito recente. Na minha infância, por exemplo, e olha que ainda gozo do auge de meus 26 janeiros, quando se realizava algo grandioso, por mais extasiante que fosse, nada valia se não houvesse por perto uma câmera fotográfica ou uma filmadora caríssima por perto.
Lembro de um baile no CTG Rodeio Serrano, em São Chico, que fui com meus pais. Eu era tão piazote que, se visse o tal vídeo do Ronaldinho, ainda nem entenderia o significado daquele movimento repetido, coisa de sete anos, suponho. Não lembro qual conjunto tocava no baile, mas estava lotado.
Para mim, pouco significado teria tudo aquilo, não fosse uma súbita vontade de dançar pela qual fui acometido. Penso que estes são aqueles momentos exatos em que uma pessoa avança um estágio, e eu, de criança imberbe, tornei-me naquela hora um projeto de peão. Faltava, portanto, a prenda.
Não demorou, avistei-a. Uma prendinha de vestido rosa, morena dos olhos azuis, totalmente retilínea, sem curva alguma: o par perfeito para uma contradança com um peão de sete anos. Sem pestanejar, passei a esgueirar meu corpitcho leviano por entre as bombachas e saias de armação que rodopiavam pela sala, até que consegui vê-la melhor.
Dançar, no entanto, não seria tarefa fácil, pois à volta da pequena pinguancha já amealhavam-se uns dois ou três gaviõezinhos matreiros, loucos para mandarem minha caçada para o mato. Ela, no entanto, distribuía nãos taxativos, eliminando os caranchos um a um. Tive a paciência necessária para aguardar a minha vez. Estava confiante, mesmo sem saber o porquê.
Cheguei bem perto e fui recebido com a mesma expressão de desdém que os demais. Ainda desprovido de táticas de conquista que os feromônios trazem anos mais tarde, lasquei apenas um “quer dançar?” meio desconfiado, procurando amortecer a dor da negativa que parecia certeira. A guria olhou-me no grão dos olhos, arregalou os olhos azuis e proferiu:

- Não.

Este é o primeiro fora do qual tenho lembrança. “Tôco”, como chamam os adolescentes de agora. Contudo, a jornada para chegar até ali tinha sido tão dura, que resolvi não sair de perto. Parei ali, prostrado feito um dois de paus, sem a mínima habilidade para ao menos estabelecer um diálogo infantil, enquanto a prendinha apenas fitava o horizonte que, tal qual o meu, era repleto apenas de bombachas e vestidos esvoaçantes.
Lá pelas tantas, no entanto, algo mudou. Talvez minha presença inesperada tenha soado como um gesto de determinação, mas o fato é que, sem mais nem menos, após mais de dez minutos de silêncio, ela fitou-me novamente e entregou os pontos:

- Tá, vamos dançar.

Aquilo foi um planchaço de adaga nos peitos, e fui tomado de tamanha onda de emoção, que mal sabia como proceder. Eu só conseguia pensar nos meus pais: “eles precisam ver isso”. Era a maneira mais prática de mostrar-lhes minha evolução como pequeno ser humano, que eu dava sinais de continuidade da família, da espécie e talicoisa. Passei, então, a dançar num passo arrastado, enfrentando aquele mar de gente graúda e lutando com todas as forças para atingir o campo de visão da mãe e do pai.
De repente, enxerguei a mesa da família, finalmente a primeira etapa estava cumprida. O brabo seria chamar a atenção, uma vez que um par de crianças de sete anos não é facilmente visto num salão de CTG lotado. Minha vontade era gritar “paiê, olha eu aqui dançanduô!!” com todas as forças, mas eu sabia do risco de, em fazendo isso, a percantinha me largar e sair desatinada para seu refúgio e voltar a distribuir os seus nãos a torto e a direito.
Naquele nervosismo, no meio do ambiente calorento, com a sudorese prestes a me tomar conta dos poros, finalmente meu pai virou o rosto e testemunhou a cena. Pude ver a emoção lhe contagiando as têmporas, pois ele anunciou para todo mundo na mesa e saiu em disparada na direção de um fotógrafo. Meu pai, tanto quanto eu, sabia da importância de registrar aquele feito, minha primeira contradança conquistada sozinho, sem ser com prima, mãe, tia ou avó.
Mais aliviado em ser descoberto, procurei manter o passo da vaneira por ali, enquanto os outros na mesa regozijavam com minha façanha e o pai caçava o fotógrafo. Fosse hoje, com a febre das digitais, bastaria um brilhar de flash e pronto, no outro dia já estaria no Facebook, queimando o filme da guria pro resto da eternidade.
Noutra ponta do salão, finalmente o homem da fotografia fora localizado. O pai o trouxe em disparada, aflito pelo registro. O que eu não sabia, no entanto, era que a música aproximava-se do fim, daí a pressa. Uns dez segundos depois, o gaiteiro tocou o último acorde e a vaneira terminou. Instantaneamente, sem nem mesmo dar tchau ou permitir que eu agradecesse o prazer da contradança, meu pequeno cambicho de vestido rosado desgrudou a mão da minha e partiu em disparada para sua mesa, sentando-se novamente com o olhar perdido e, voltimeia, distribuindo nãos aos caranchinhos desavisados. Pude ver a decepção no rosto do pai por ter chego tarde demais, ou mesmo por pena de mim, que fiquei paralisado por alguns segundos, ainda tonto pelos giros desregulados no salão misturados à maravilha do que acabara de realizar.
Ao chegar na mesa, fui saudado como um heroi de guerra. Foram parabéns bem recebidos, senti-me  confortável naquela posição e, desde então, passei a abordar as prendinhas nos bailes, mesmo recebendo dezenas de recusas. Ainda assim, não houve registro e o momento não pôde ser eternizado numa foto.
É desses momentos que falo. São exuberantes e inesquecíveis porque estão na memória, ao contrário de agora, onde quase tudo é volátil e tem prazo de validade nas redes sociais. Eternizar as grandes façanhas já teve mais graça nessa vida.

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