Como incinerar suas últimas horas de férias

Tudo começou com o balaço que tomei no reveillón. Tá certo que foi épico, que a festa estava maravilhosa e talicoisa, mas é fato que o álcool costuma desregular o raciocínio de seus consumidores, levando-os a cometer certas insanidades cujos ônus são deveras inóspitos, cobrados a juros altíssimos e correção monetária desumana.
Findo o porre do Feliz 2012, o domingo foi aquele dia em que o cidadão passa mais atirado que alpargata em cancha de bocha. Estava eu lá, inalando aquela fumaceira aprazível do churrasco de aproveitamendo das carnes sobradas na noite anterior, não podendo nem lembrar do gosto da cerveja ingerida irresponsavelmente. Ela, que outrora fora tão saborosa... Permaneci ali, sabedor de que aquela ressaca ainda duraria intermináveis horas, até que o sono tomasse conta de meu ser e me levasse para outra dimensão, aonde os porres se dissipam ao som das harpas de querubins advindos d'algum canto desse mundão véio que Deus criou em seis dias, descansando só no sétimo, o que nos levou à condenação de fins-de-semana com míseras quarenta e oito horas de descanso.
Exatamente às nove e meia da noite de domingo, meu penúltimo dia de férias, adormeci. Ao que, às seis e meia da matina, para surpresa geral da nação e dos galos habitantes das cercanias do condomínio, despertei lépido e faceiro, como se nada tivesse acontecido. Acometido de um gauchismo impetuoso e bagual, cevei um mate e iniciei o dia assistindo às notícias do Bom Dia Rio Grande. Ao que tudo indicava, meu último dia de descanso seria aproveitado até a última gota, uma vez que eu esbanjava disposição para curti-lo.
O equívoco, no entanto, não tardou a surgir. Foi ao folhear a página do jornal em que continham as ofertas de animais para venda, onde repousava suavemente o anúncio de filhotes fofos e gorduchos da raça Collie, os peludões tipo Lassie, manjam? Pois é, cachorro campeiro e tudo mais, cresci o olho e decidi pela aquisição impulsiva, a fazenda necessita de um novo guarda desde o sumiço do meu velho amigo Aladim, que resolveu deixar os pagos talvez pelo olor do cio de alguma pinguancha canina e nunca mais encontrou o caminho de volta. Faço votos que esteja, pelo menos, grudado n'alguma percanta beiçuda Rio Grande a fora, pelo bem da continuidade da espécie.
Pois bem, procedi com a compra do filhote. Uma bolinha gorda que dá até gosto de ver, pelo menos enquanto dorme. Ou dormia. Sim, foi por aí que começou o martírio. Até dez da noite, o rapazinho regozijou de um sono paquidérmico, daqueles de estufar a pança e soltar o ar em prestações de suspiros agudos e profundos. Porém, quando a vizinhança e os casais de boa reputação resolveram dormir, o que inclui neste rol minha adorada esposa e eu, eis que o baita arregalou o grão dos olhos e resolveu que haveria festa na floresta.
Os primeiros capítulos, como todo filhote que se preze, vieram literalmente regados a muita urina e algumas tirinhas de fezes. Alie isto à primeira dose do vermífugo que eu havia administrado por via oral à tarde, e teremos o seguinte diálogo:

- Olha lá, Dani, a sujeira que ele fez! Eu te disse para não tirá-lo da caixa, agora vai virar numa imundícia a nossa sala! Limpa lá, por favor!

- Tá, tá, peraí... Ei, ele por acaso comeu massa?

- Não. Esses fiozinhos que tu tá vendo aí são o resultado do remédio de vermes que eu dei à tarde.

- (Danieli proferindo grunhidos de nojo, ânsias de vômito e risadas enlouquecidas, tudo ao mesmo tempo).

O sono abalroava-me estupidamente, fruto de meu despertar "muy temprano". Decidi que ignoraria a bagunça do cãozinho e dormiria normalmente em meu último dia de férias. Enquanto isso, a Dani ficou tentando entretê-lo com mantas peludas, ração e toalhas velhas. Forramos o lavabo com jornal e o abandonamos por lá à própria sorte, que o dia seguinte seria de labuta ferrenha, o famigerado Dia de São Pega.
Duas e cinquenta da manhã. Este foi o limite da paciência do menor abandonado. A partir daí, o que se ouviu foi uma sequência frenética de ganidos impacientes, que devem ter acordado até mesmo os monges do longíncuo Himalaia, se é que há algum monge por lá, no meio de tanta neve. Meu despertar lento levou a Dani a fazer as honras e, como macho da casa que é, tentar resolver a situação. Em quinze minutos, o bicho calou a boca e voltou a dormir. "Tchê bagual, casei com Virgulino Lampião, cabra hômi da peste!", pensei. Quarenta segundos após cerrarmos as pálpebras, a celeuma recomeçou. "Toleimas, casei com o Sassá Mutema mesmo", refleti.
Diante daquele impasse, na sofreguidão de salvaguardar ao menos o sono dos vizinhos, levantei da cama e arremessei o restante de meu descanso para as bandas de Saturno, reduto aonde aconchegou-se minha paciência uma hora mais tarde. O fato é que dei ração, água, tapinha na bunda, cantei Nana Nenê, tudo isso enquanto assistia a uma série de comédia no Universal Channel, uma tal de Will e Grace, que no fim das contas é uma baitolagem do caramba, com todo o respeito aos direitos humanos e à livre orientação sexual.
Naquelas alturas, tudo o que eu queria era que o bicho adormecesse uma horinha que fosse, para que eu pudesse ao menos pregar os olhos e chegar com um semblante decente no retorno ao trabalho. Bem, creio que não deve ser difícil concluir que isso não ocorreu, né? Às cinco da manhã, antes de ultrapassar a barreira da psicopatia e sufocar o inocente com um pano de prato, pedi à Dani que o embalasse mais um pouco e me concedesse uma última tentativa de sono reparador.
Foram intermináveis sessenta minutos rolando na cama. O sono já havia pego o primeiro avião com destino à felicidade, e só me restou apelar para Nossa Senhora do Guaraná Cerebral, esta santa que me salva quando durmo menos de cinco horas por noite e me mantém alerta até o fim do expediente, ainda que mais lento que tropeada de lesma, mas vá lá.
Às seis e meia da manhã, já de banho tomado e pronto para o batente, "que venha 2012" e aquela pataquada toda, levei nos peitos o tiro de misericórdia: enquanto eu partia no modo zumbi para o serviço, o pequeno infante, sadio, grimpante e desverminado, dormia impiedosamente em cima de uma manta velha de lã, parte dos artifícios infindáveis da Dani usados durante a madrugada nas tentativas de hipnose canina. Diante daquela cena desmoralizante, com o cérebro em frangalhos e o corpo virado num chapéu velho, restou-me apenas um último resquício de dignidade para admitir a derrota e batizar o cachorrinho: se chamará MADRUGA. Tenho até medo do panorama que encontrarei quando for em casa ao meio-dia para vê-lo.

PS: Não está descartada a hipótese de irmos hoje, após o expediente, até São Chico para entregá-lo de uma vez aos meus avós e, queira Deus, podermos recuperar o sono perdido.

2 comentários:

  1. Buenas primo velho!

    Primeiramente aproveito para desejar-lhe um Feliz Ano Novo, estendendo as felicitações à Dani.

    Depois, pelo que li, passaste, literalmente, uma noite de cão. Risos! Não tivesse sido quase uma desgraceira esta tua noite, até diria que foi hilária.

    De qualquer sorte, um belo relato do cotidiano (coisa que fazes com maestria), ainda que não seja algo tão comum (ter um filhote canino).

    Passado os contratempo, tenho certeza que o jovem Madruga será de grande valia ao saudoso João Maria.

    Um forte abraço.

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  2. ôô Antônio, é só um coitado de um cachorro. rs
    O meu Macgyver está fazendo um ano dia 21/05, e não deu trabalho algum no inicio, acredite se quiser.
    Mas aprendeu que as 6h da madrugada, se ele latir até arrebentar as cordas vocais, vai acordar alguém pra ir abrir a porta pra ele entrar em casa.

    É, pequeno monstrinhos.

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