Protegendo os documentos

Ontem aconteceu algo bem chato comigo. Duplamente, pode-se dizer. Uma por ser desagradável, e outra por ter, literalmente, achatado uma parte de meu corpo esbelto. Após esta piadinha cretina e recheada de infâmia, vamos aos fatos.
Jogar futebol no inverno gaúcho não é tarefa das mais amistosas. Este frio de renguear cusco, que habita os pampas nesta época julina, judia dos atletas com a sordidez de um carrasco insólito. Os músculos levam muito tempo para aquecerem de fato, gripes e resfriados prejudicam o desempenho, o suor gelado, a respiração fica mais ofegante, tudo isso complica a vida de quem gosta de bater uma bola com os amigos. Falando nisso, tem as boladas também.
Levar uma bolada em dias frios é desumano. A dor é multiplicada muitas vezes e, quando acontece, faz o pobre do vivente caminhar miudinho. Isso, naturalmente, quando a bola acerta alguma parte neutra do corpo, como a coxa, as costas ou um braço. No rosto já fica mais sério, bolada no nariz é pra desestruturar o sujeito, além do risco de sangrar que é iminente.
Contudo, a pior de todas é a região genital. Valha-me São José, como dói uma bolada abaixo do ventre, bem ali na zona do agrião. O cara vira astrônomo no ato e não precisa nem de telescópio para ver estrelas. É um misto de ardência com falta de ar, além da sensação de ficar imediatamente estéril e impotente pelo resto da vida. Não se deseja uma bolada na região escrotal nem ao pior dos inimigos, pois todo homem conhece a gravidade do assunto.
Pois bem, caí na besteira de prostrar-me na barreira quando marcada uma falta à frente da área. Jesus, como me arrependo! Sem dó nem piedade, o cobrador do time adversário desferiu um petardo a la Célio Silva e a danada da bola fez um strike no meu saco, falando assim, de modo bem grosseiro.
E olhem que costumo prender a respiração neste tipo de lance! Enrijeço a musculatura, puxo o ar e seja o que Deus quiser. Bueno, não sei se Ele quis, mas o fato é que a bolada contrariou a misericórdia divina e acertou meu ticolino em cheio. Que dor! Naquele frio medonho, ainda tentei correr no rebote, mas o sinal de emergência genital soou antes que eu pudesse raciocinar, e tombei inerte com o escroto em chamas. Fiquei sem respirar alguns segundos, pois qualquer movimento que fizesse seria como vivenciar o próprio ato da castração.
Nessas horas, a reação dos colegas de time é variada. A maioria ri, bando de canalhas. Tripudiam sobre a dor alheia, pude até ouvir um deles imitar a onomatopéia de um sino batendo, o que por sinal ilustrou com muita propriedade o que eu estava sentindo. Outros, porém, tem compaixão e fazem aquela tradicional careta, demonstrando empatia com a dor fulgurante. Por último, uma alma caridosa veio em socorro. Aquele procedimento emergencial de pegar as pernas e sacudir, fazer o movimento de sanfona e mandar abrir os braços. Mais que isso não dá pra fazer.
Passados alguns instantes, arcado feito um quadrúpede, relembrei os movimentos ancestrais e saí do jogo engatinhando, ainda tentando entender o que acontecera e rogando aos céus que tudo ainda estivesse em seu devido lugar.

Este fato desagradável, inclusive, me fez recordar de outra passagem envolvendo genitália e afins.
Foi em São Francisco de Paula, a velha São Chico, palco de minhas férias e melhores passagens em família. Desde pequeno, sempre fui apegado aos avós, vivia às voltas com eles nos meses de férias. Era um mundo paralelo, longe da escola, dos colegas, três meses de descanso puro e absoluto.
Além dos avós, sempre tive bom trânsito entre os mais velhos. Lembro da minha bisavó, Andradina, com seus cabelos completamente branquinhos feito algodão e o sorriso estampado no rosto. Adorava apertar todas aquelas pelancas dos seus braços e ficar perto dela. A Bisa tinha aquele cheiro bom de velhinha, é uma recordação gostosa de sentir.
Também comi muito ovo cozido na casa da Tia Marica, irmã da Bisa Andradina. Magrinha que nem palito, a tia era um amor, além de acertar sempre na gema mole do ovo, como eu gostava. Fugi algumas vezes lá para a casa dela a fim de filar ovos cozidos e conversar um pouco sobre assuntos diversos.
Outro era o Seu Normélio, vizinho da minha madrinha. O Normélio era um senhor bem velho que ficava na soleira da janela do sótão da casa em frente onde mora a irmã da minha mãe. Eu tinha curiosidade em saber mais daquele ancião e, assim que tive oportunidade, troquei ideias interessantes com ele, e percebi que pode-se ter uma visão curiosa do mundo espiando através de uma janela.
Todavia, nem tudo são flores. Aprontei muitas traquinagens, confesso. A pior de todas era brigar com minha irmã. Brigávamos, deusolivre, como brigávamos. Todos diziam que parecíamos cão e gato, onde eu fazia o papel do cachorro voraz e a Débora o do gato manhoso, chorão e de miados estridentes. Não era muito legal para o restante da família conviver com aquela gritaria toda, ao que minha bisavó resolveu mexer seus pauzinhos senis.

Surgiu o boato sobre um tal de João Américo.
Era um velho bem velho, mais que o Normélio. Já o havia visto algumas vezes rapidamente, e não gostei do panorama. Tinha cara de mafioso, usava uns óculos escuros e almoçava diariamente na casa da madrinha. Andava com o passo curto, porém firme. Viúvo, casereava solito há anos na residência de um casal que nunca vinha a São Chico. Um tipo suspeito e que facilmente assustaria qualquer criancinha só pela biografia obscura.
Currículo este que minha bisavó tratou de apimentar com uma informação estarrecedora: o velho era castrador de guris brigões. E eu era um guri brigão. Não foi nada animador tomar conhecimento daquilo. Qualquer coisinha, ameaçavam, "cuidado, que o João Américo te pega e te capa". O pavor de cruzar com aquela criatura do mal foi tomando conta de mim.
Porém, brotou-me a dúvida sobre as gurias. Afinal, o que ele cortava caso a brigona em questão fosse uma guria? Ladina, a Bisa remanchou um pouco e, mesmo evasiva, deu a resposta: as orelhas. Das gurias, ele cortava as orelhas.
Como pude acreditar nisso, meu Deus? Quer dizer que eu podia perder meu pinto, enquanto que minha irmã seguiria a vida bela e faceira, apenas sem um par de orelhas? Percebi o clima de conspiração contra mim, não era justo sacrificar o futuro da família e atorar meu saco fora a troco de umas briguinhas, enquanto que a punição de minha irmã seria tão branda.
Certa feita, estávamos todos na casa da vó, quando dei uma de Seu Normélio e resolvi espiar pela janela. Antes não tivesse feito! A passos lentos, o João Américo se aproximava. Havia, finalmente, chegado a hora do sacrifício, ai de mim! Mas, como a luta pela sobrevivência é o instinto da raça, zuni feito um raio dentro de casa e voei para debaixo da cama. Enquanto buscava guarida entocado no quarto, pude escutar uma frase na voz do castrador, que arrepiou meu esqueleto:

- Eu queria castrar um guri! - e ficou aquele silêncio funesto no ar.
Petrifiquei de medo. Meu tico, meu tico, meu tiquinho! Aquele fascínora cortaria fora meu instrumento e minha bisavó não faria nada! Comecei a dizer nomes de santos, todos os que conhecia. Minha vó tinha ensinado algumas rezas pro anjo da guarda e disse que as fizesse para que ele me livrasse de um tal de Malamém. Torcendo para que também funcionasse contra o João Américo, chamei anjo, santo, tudo que foi nome, dei até a escalação da Seleção de 82.
Para piorar a situação, a Bisa entrou no quarto e veio me chamar. Velha matreira, descobriu meu esconderijo! Eu devia ter desconfiado da experiência contida em tantos cabelos brancos. Espremi meu corpo mais ainda contra a parede e disse que dali jamais sairia. Castrado, sim, mas não sem luta! Que viessem João Américo e seu canivete, mas ainda assim eu pelearia até onde pudesse! Chorei de medo, implorei à minha mãe, pedi pela minha vó, que me defendia nas horas de apuros, mas a palavra matriarcal da Bisa Andradina parecia ter mais influência. Maldita hierarquia familiar!
Minha vantagem era a cama ser grande, não seria fácil me arrancar de lá. A tarefa exigiria uma coluna ágil e um naco de destreza, qualidades que o tempo já subtraíra tanto da Bisa, quanto do João Américo. Lá prostrei-me, e lá passei a tarde. Só abandonei a toca depois de ter a certeza de que o malfeitor havia deixado a casa e, pelo menos naquele dia, escapei de perder os documentos no fio do canivete daquele velho castrador de guris brigões.
Passou um tempo e aquela conversa foi se dissipando, já não se falava mais tanto em castração. Além disso, ganhei idade e, com isso, raciocinei que não podia ser verdade que um velho colecionasse sacos de guris e orelhas femininas, chegando à conclusão óbvia de que aquela barbaridade não aconteceria comigo.
Fiquei, pasmem, amigo do João Américo! É sério! Aquela cara de mau era só lenda, ele sempre trazia balas de presente e acabei virando fã do velhinho. À medida em que envelhecia, poucos conversavam com ele na hora do almoço, alguns até torciam o nariz para o pobre. Já eu, era amigão, ganhava colo, balas e retribuía com atenção. Brincávamos de cócegas, ele tinha a mão tremelica - mais tarde fui conhecer o tal Parkinson - e era tudo muito divertido.
É claro que, lá no fundo da consciência, bem que eu pensava na história do canivete, e aí mesmo é que caprichava na amizade. Não sou bobo, né? Tinha que fazer o meu lado e preservar a perpetuação dos meus filhotes que um dia ainda virão. Afinal de contas, é como diz o ditado: se estou de bem com a abelha mestra, o resto do enxame que ronque à vontade!

3 comentários:

  1. Tudo bem, deve ter doído um bocado. Como desconheço a dor, tenho que dizer: Ainda bem que essa bolada me rendeu muitas gargalhadas!

    Tá demais!

    ResponderExcluir
  2. Sempre leio os teus textos imaginando tu com a tua voz contando isso no meio de uma roda de amigos, segurando um chimarrão ou um copo de quentão. Tuas histórias tem um gosto incrível de infância, me dá saudade das coisas que tu conta como se eu mesmo as tivesse vivido.

    Abração!

    ResponderExcluir
  3. Rindo muito! ahahah
    triste, dolorido, mas demais!

    Beijo Tony :*

    ResponderExcluir

<< >>