A morte da galinha choca

A tônica deste blog sempre foi retratar momentos. Passagens aleatórias da vida, sempre com algum quê de verdade e algumas pitadas de hipérbole para dar graça na coisa. Vejam a minha situação atual, por exemplo. Escrevi um texto todo cuti-cuti para a Dani contando sobre os andamentos do nosso amor. Que lindo. Aí, voltei de São Chico e encontrei a casa mais vazia que carteira de assalariado em meio de mês.
Fosse só o vazio corpóreo, tudo bem. Durmo esparramado na cama e não reclamo da ausência da patroa. O problema está na despensa. Se quando estamos os dois em casa já não vamos ao mercado com frequência, imaginem então em tempos de férias duplas. Noves fora, não há nada rápido na geladeira para que se possa matar as lombrigas de um homem faminto. Este é aquele momento em que fazem muito sentido todas as vezes que escutei que fui paparicado demais pela minha mãe e minhas avós.
É claro que há as tele-entregas, eu poderia sair para jantar, ou mesmo frigir uns ovos e comê-los com bolachas, únicos itens práticos disponíveis. Só que aí vem aquele cheirão de azeite, suja a frigideira, prato, dá uma lambança medonha. Melhor não, que a preguiça nessas horas me é grande conselheira. Restou, portanto, um singelo pote de doce de figo que meu dindo preparou lá na vó Dilma e mandou de presente na minha volta. Bendito seja! Há dois dias que meu estômago só vê figo e cerveja.

Toda essa situação de embaraço e preguiça culinária me fez recordar que nem sempre fui assim. Houve tempos em que, sem ainda saber da minha natureza de indecisão libriana, as decisões eram mais fáceis na minha vida e era descomplicado driblar os percalços que o caminho apresentava.
Na infância, fui um renomado criador de garnizés em meu bairro. Era a herança vocacional vinda de meus dois avôs que se manifestava cedo, uma vez que ambos lidavam com animais e, no caso especial do vô Gentil, galináceos. Aliás, o velho Dutra era entusiasta ferrenho da minha atividade mascate de comerciar garnizés. Com ele, aprendi os entrementes da criação, atalhos de velha raposa na arte de criar galinhas que só um homem de cabelos grisalhos é capaz de adquirir com o passar dos janeiros.
Lembro do primeiro casal de garnizés que comprei. Fui à casa de uma velhota que estava disposta ao negócio para conhecer os exemplares: um galo branco e uma garnizé marrom. Na hora de fazer o marketing, a anciã foi enfática:

- O galo canta todo dia e a galinha é muito poedeira - discursou.

De fato, o macho era um fígaro. Entoava cantigas ao raiar do sol e assim prosseguia o dia inteiro como se um tenor fosse. Já a galinha... custou a botar um ovo aquele bicho. Senti-me logrado durante semanas, pensei até em protestar contra a velha, mas a paciência é a mãe dos justos e, algum tempo depois, finalmente brotou um ovinho daquela cloaca.
Dali, ganhei o mundo. Tomei gosto pela coisa e passei a negociar garnizés como se não houvesse amanhã. Em pouco tempo, nosso pátio virou um terreiro de galináceos que cacarejavam e ciscavam alegremente a grama, para desespero de minha mãe. É que, claro, os bichinhos faziam suas necessidades por ali mesmo, o que causava sérios transtornos de ordem higiênica, se é que me entendem.
No entanto, nada abalava minha austera atividade comercial e pecuária. A intenção era essa, aumentar o plantel e deixar que as bicudinhas andassem lépidas e faceiras pelo pátio catando minhocas, graminhas e o que mais pudesse lhes alimentar.
As histórias com garnizés são inúmeras, daria textos para mais de metro. Todavia, como a culinária é o enfoque de hoje, contarei a passagem acerca de uma galinha dissidente que voltou-se contra a minha autoridade e acabou levando a breca. Ocorre que, bem antes de lançarem aquele filme da fuga das galinhas, as minhas já aprontavam das suas. Voltimeia, sumia uma garnizé. Escafedia-se. Nas primeiras vezes fiquei desesperado, pensava que algum biltre safado as estivesse afanando, o que certamente comprometeria minha criação e ainda traria problemas de segurança no terreiro. Porém, passados vinte e um dias, eis que as danadas apareciam com uma horda de pintinhos sob suas asas maternais. Era apenas a espécie proliferando e trazendo lucro para seu dono, no caso, eu.
Pensem num caboclo feliz da vida! Galinha choca era sinal de prosperidade e, como tal, possuía tratamento de celebridade. Era necessário incentivar o continuísmo dos garnizés, seja com comida especial ou mesmo gaiolas aconchegantes na parte nobre do galinheiro.
Corria tudo às mil maravilhas, até que surgiu um imprevisto. Certo dia, notei que um dos pintinhos comportava-se de maneira irregular. Havia um roxo ao redor de seu olho e o pobre não dava um pio, mantendo-se inclusive longe de sua mãe. A galinha, por sua vez, agia com hostilidade a cada aproximação de seu rebento. Apesar de inexperiente, diagnostiquei de imediato a problemática: rejeição.
A desgranida teve a coragem de enjeitar seu próprio filho! Pinto de seu ovo, sangue de seu sangue! E reagia a bicadas vorazes! Tentei interferir, separei o coitadinho da família, quis criá-lo em cativeiro, mas não funcionou. Quando acordei numa manhã qualquer da semana, presenciei uma cena de horror. O pinto estava com um lado da face aparecendo o osso, de tantas bicadas. Veio a óbito, naturalmente. Considerei aquilo o cúmulo da crueldade, mas imaginei que fosse alguma espécie de depressão pós-parto da galinha e que não fosse acontecer novamente.
Para meu infortúnio, eu estava enganado. Dias depois, outro pintinho apareceu de olho roxo. Bueno, aí a coisa foi para o lado pessoal. Vi o sangue brotar em meus olhos e decidi que uma medida drástica precisava ser tomada. Numa atitude inquisitiva e absolutamente penal, decretei que a galinha assassina tinha que morrer. E, sem muita explicação, planejei a execução.
Ora, na fazenda do meu avô se matava galinhas com relativa frequência e várias vezes eu havia presenciado a carneação. Seria fácil reproduzir o ato lá em casa. Foi então que, numa manhã ensolarada, convoquei um amigo para o serviço e partimos para a tarefa com o fim específico de mandar a malvada para a panela. Não bastava matar, era preciso comer com farofa depois.
Os problemas, entretanto, começaram antes do que se previa. Com menos de dez anos de idade, ainda não tínhamos força suficiente para torcer o pescoço da garnizé. Grudei as unhas de todas as formas, mas, quanto mais eu torcia, mais viva a dita cuja parecia. De repente, a tia que trabalhava lá em casa deu uma ideia bastante interessante. Disse que na sua casa matavam as galinhas colocando um cabo de vassoura em cima do pescoço e puxando pelos pés até que se escutasse estralar. Tiro e queda.
Afoito que estava por dar fim à vida daquela criminosa, aceitei a sugestão de bom grado. Catei um cabo de vassoura na garagem, larguei em cima do pescoço da garnizé e tratei de puxar pelos pés. Só que, bem, creio que meu desejo de vingança tenha exercido uma certa força visceral naquele movimento. Puxei com tanta força, que arranquei o pescoço da galinha! Amigos, a cena seguinte foi dantesca. Apavorado, larguei aquele corpo decepado, que por sua vez passou a dar piruetas dentro da garagem, fazendo com que voasse sangue por todos os lados. Meu amigo ficou estático num canto, agarrado às pernas da tia. Ficamos olhando aquela cena até que o corpo sem vida cansasse e finalmente parasse de pular. Do lado de fora da garagem, os quatro pintinhos que restaram - agora órfãos - assistiam àquela cena com expressões nada agradáveis.
Passados alguns segundos de pavor absoluto, engoli em seco a brutalidade do meu ato e dei seguimento ao ritual da carneação. Depenei, sapequei, limpei as vísceras, cortei os pedaços e pedi à tia que procedesse com o cozimento. É claro que o processo não saiu perfeito, pelo contrário, fiz uma bagunça medonha. Só assim para eu perceber que não era tão fácil quanto via meu avô fazendo. Sujei todo o pátio, o tanque e, bem, a garagem estava virada numa obra impressionista com todo aquele sangue.
A sabedoria dos antigos diz que não se deve comer carne de galinha choca. Contam que a febre do choco escurece a carne e torna-a imprópria para o consumo. Quando manifestei a ideia de acabar com a vida da garnizé para minha mãe, foi essa a resposta que recebi, ao que não dei muita importância. Antes tivesse dado. A carne ficou preta, meio que puxando a lilás. Algo, de fato, impróprio para a gastronomia. Diante da panela onde estavam cozidos os restos mortais da algoz dos pintinhos, seus próprios filhos, arrependi-me. Desisti de comer e pedi à tia que jogasse tudo fora.
O bom disso tudo é que salvei os pintos e, com isso, a minha criação de garnizés. Ainda assim, como hoje, fiquei com fome, mesmo tendo tomado uma atitude firme. Conclusão: não adianta agir drasticamente para se obter alimento, ainda mais quando se tem um bom doce de figos na geladeira. Ou então ter um pouco de sorte. E amigos. Enquanto escrevia este texto, recebi uma ligação convidando-me para um churrasco. A janta está garantida, ao menos a de hoje. Espero não lembrar da pobre galinha quando for comer.

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Tu escreves de uma forma engraçada, risos. É bem legal escrever sobre a vida de uma forma espontânea e alegre. Eu já escutei sobre os malefícios de comer uma galinha choca. E, lendo a sua postagem, lembrei da minha professora de inglês falando sobre o seu marido: "homens paparicados pelas suas mães não vivem longe da sua esposa. Não pela saudade, mas pelo caos que as suas vidas se transforam. Que caos? O caos doméstico." Hahahaha... Pois é. Beijos e um ótimo fim de semana.

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  3. Eu mesmo tenho muita preguiça de ir ao mercado sozinha hehe
    Gostei do texto.

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  4. Belo texto, bruxo, mas eu tirei outra conclusão de tudo isso: É o segundo texto, quase que consecutivamente, que tua mãe te dá um conselho, tu não escuta ela e te ferra. hehehehe Assim como no texto do churrasco, não ouviu o conselho da tua mãe e te deu mal. =D Seria interessante deixar de ser tão teimoso e escutar ela com mais atenção... =D Abraço.

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  5. Há alguns dias comentei tal façanha com a mãe, que não acreditou na minha história e achou que eu tinha sonhado. Tá aí a prova de que era verdade, lembro perfeitamente da cena, apesar da pouca idade.

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