O gato sem bolas

Ontem acompanhei, pela primeira vez na vida, uma castração de gato como manda o figurino. Estou no nono semestre da faculdade de Medicina Veterinária e nunca havia presenciado um pobre bichano perdendo sua masculinidade. Tenho, declaradamente, um notável desinteresse pela clínica de cães e gatos, o que tem me mantido distante destas práticas, mas agora não teve mais jeito: a disciplina de cirurgia obrigou-me a confrontar os pequenos.
Isto não significa, porém, que eu nunca tenha visto antes um gato perder as bolas. Há muitos anos, lá em São Chico, minha avó tinha um gato chamado Bilu. Era amarelo, mimoso e dormia debaixo do fogão à lenha. Pelo menos durante o ano letivo, porque nas férias a paz do pobre bicho terminava. Digamos que eu não era uma visita muito simpática e, dotado de uma vassoura, tratava de demonstrar desde cedo que não trabalharia com gatos no futuro. O pobre Bilu me enxergava entrando numa porta e voava por uma janela em nome de suas sete sobrevivências.
Certo dia, meu avô sentenciou que o danado deveria ser castrado. Ocorre que Bilu, deveras galanteador das madrugadas, vinha proliferando sua genética demasiadamente e a pecuária do Seu João Maria nunca contemplou invernar gatos. Partimos então para o cerimonial. Sim, porque na campanha uma castração de um felino não ocorre com a parcimônia de um bloco cirúrgico asséptico e acadêmico como é na faculdade. O troço é bruto uma barbaridade e só de relatar ganho calafrios, principalmente agora que conheço os meandros patológicos que envolvem o processo.
Um canivete, uma corda fina, uma bota velha dotada de alguns furos. Eis o instrumental. Pobre Bilu. Meu avô enfiou o gato dentro da bota e passou a cordinha por entre os furos. De súbito, apertou aquilo como se fosse um espartilho daqueles antigos que deixavam as donzelas sem ar. Passou o restante da cordinha nas patas traseiras do Bilu, afiou o canivete e ZÁS. Mal respirei e um talho rasgou o escroto do bichano. Um miado estridente e choroso pôde ser ouvido no alto da coxilha, de fazer inveja a qualquer cantiga de uma seriema desavisada. "Cuidado", disse meu velho e sábio avô. Sem entender o porquê do aviso, tive tempo apenas de num reflexo repetir o jogo de corpo do filme Matrix enquanto um filete de urina cruzava em arco por sobre o meu nariz. De tanta dor, Bilu ganhou medalha de ouro em mijo à distância. Ao sair da bota, já desonrado e pingando sangue, o máximo que o infeliz conseguiu foi acomodar-se macambúzio num canto do galpão onde ninguém mais o incomodasse até a pronta recuperação. Em três dias estava novo em folha, vá entender a natureza. Porém, infértil para todo o sempre.
Pois bem, desde aqueles tempos tenho um melindre absurdo com estes assuntos escrotais. É meio que corporativismo, admito. E a sociedade insiste em castrar, castrar, castrar. O controle populacional impera, temos que dar a mão à palmatória. Foi por isso que ontem, testemunhado por mim, cinco pobres gatos igualaram-se à história do finado Bilu, que Deus o tenha em Sua paz celestial. Não com todo aquele grau de sofrimento, felizmente. Receberam anestesia, assepsia, tudo bem limpinho e também um tratamento pós-operatório adequado.
No entanto, o ambiente não era feliz. Aquela turma de gatos ali, uns miando, outro em especial defecando na gaiola - talvez já ciente do que lhe esperava -, um odor fétido tomando conta do bloco e meta bisturi, e dê-lhe cortar bola, credo, não gosto nem de lembrar. Uma incisão na pele, outra na bola em si (a qual chamamos túnica, mas aqui não utilizarei linguajar técnico) e de repente temos dois cordões advindos do próprio testículo. Pois, macacos me mordam, não é que o procedimento envolve dar um nó com estes ditos cordões? É meta nó, meta nó, meta nó, até cansar. Fica uma trancinha e a bolinha cai fora. Ai de mim voltar gato noutra vida. Terminados os nós, larga tudo pra dentro do saquinho, acorda da anestesia e vai ser feliz, meu filho, se é que ao acordar o resto de seus dias terão algo de animador para se fazer, porque procriar que é bom nunca mais.
Isso que fiquei só olhando, meu papel era ser o instrumentador da vez. Fiquei ali, alcançando tesouras, bisturi, pinças, rezando alguma Salve Rainha perdida em compaixão à situação alheia. Inevitavelmente, pergunto-me: e quando chegar a minha vez? De castrar, obviamente, porque uma vasectomia ainda não está nos meus planos. Sim, sei que em determinado momento serei o responsável por interromper o clã de Bilu. Quando este dia chegar, semicerrarei os olhos e meditarei pela alma do velho gato de minha avó. Em silêncio, pedirei perdão pelas vezes em que o quis agredir. Todavia, sei que, em sua sabedoria felina, lá do céu dos gatos, Bilu olhará para o bisturi em minha mão, alisará o fio de seus bigodes e, com o olhar do Gato de Botas no filme do Shrek, dirá: "troca por uma vassoura, pelo amor de Deus".

3 comentários:

  1. Ai gente! Pobre Bilu! (E que nome propício hein?) Não teria saúde pra ser veterinária ou médica até. Tá é louco. Fiquei enjoada só de imaginar as cenas cirúrgicas e a do Bilu. Mas tá sensacional sua volta, Ton.

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  2. Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai que dó gente. Me arrepiei inteira com a história. Tadinho do bichano. Mas a tua narrativa tá impecável, como sempre. ♥

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  3. Aaaaai gente... Tadinhos dos gatinhos. MOrro de dó.
    Mesmo horrorizada com o sofrimento dos bichinhos, precisei libertar as risadas que vieram com tua forma de descrever tudo. kkkkkkkkkkkkkkkkk

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