As pessoas são eventos

Durante a minha tenra infância, uma das programações que mais me deixava em polvorosa era acompanhar meus avós numa festa anual que acontecia na Várzea do Cedro em mês de janeiro, consequentemente durante o meu período de férias escolares. Era uma dessas festas em honra ao santo padroeiro, que pode ser Antônio, Expedito, Carlos, Francisco e por aí vai. Devo confessar que não recordo quais os santos padroeiros de lá, visto que já não frequento o evento há alguns anos e também porque a pandemia riscou do mapa este tipo de programação provisoriamente.

O fato é que, em determinada ocasião, fiz por lá um amigo do peito. É admirável a facilidade com que as crianças estreitam laços. A Lara, minha filha, chega em qualquer ambiente, dá uma conferida nas crianças presentes e, minutos depois, volta sentenciando, faceira: "pai, fiz um(a) novo(a) amigo(a)". E foi desta mesma forma que o fiz, lá em mil novecentos e guaraná com rolha, na Várzea do Cedro. Recordo que, criativos que éramos (e as crianças dos anos 90, desprovidas de Netflix e Youtube forçosamente precisavam queimar fosfato para elaborar distrações), construímos cavalos de pau - encilhados a capricho - e passamos o dia galopando, gineteando, campereando e todos os demais termos da lida equestre que determina a tradição gaúcha. Como vocês podem observar, foi dia bastante marcante na minha memória.

Memorável a ponto, inclusive, de no ano seguinte eu aguardar com efervescente ansiedade pelo dia da festa, pelo reencontro com meu amigo, agora já não mais tão novo, mas sim solidificado pelo passar de doze meses, para que pudéssemos repetir aquela nossa brincadeira que tanta alegria me causou. Levei inclusive alguns apetrechos extras para incrementar a nossa lida, tamanha a expectativa que havia me acompanhado durante um ano. Para minha surpresa, no entanto, a vida do meu confrade não contemplara o mesmo planejamento. Pior que isso, ele sequer dirigiu a mim um cumprimento decente, agiu com certa indiferença e, frente a alguma insistência inicial da minha parte, torceu o nariz e buscou notável afastamento. Um golpe duro na minha construção do conceito de amizade, convenhamos. Todavia, uma lição firme de como a vida funciona na prática.

***

Voltando ao nosso iminente 2022 após este pequeno flashback, recurso quemomentista do qual lanço mão há quase duas décadas (vocês percebem o charme que essa expressão traz consigo? Eu acho o máximo!), compartilho aqui esta reflexão que, mesmo tendo acontecido há quase trinta anos (aqui já com um cunho bem menos charmoso), poucas vezes teve o peso que adquiriu de alguns tempos para cá, quando finalmente validei o significado da frase utilizada no título deste texto.

As pessoas são, em nossas vidas, eventos. Que têm início, meio e fim. Há exceções, naturalmente, não é verdade absoluta para todos os terráqueos, tampouco tenho qualquer ambição de que seja, mas considero válida a reflexão. Dia desses li uma frase num desses memes que invadem os stories do Instagram que dizia: "já parou para pensar quantas pessoas do seu passado conhecem uma versão de você que não existe mais?". Pois bem, eu ainda não havia parado para pensar e o fiz. Muita coisa ficou mais fácil de entender naquele momento.

E mais libertador ainda passaram a ser algumas necessárias rupturas de convívio, relações e amizades que aos poucos começaram a ocorrer. Uns de infância, vinte, trinta anos de companheirismo; outros que foram sim muito importantes em épocas decisivas, mas cujas vidas seguiram caminhos totalmente distintos. Não só caminhos, mas ideias, estilos de vida e tudo mais que possa causar qualquer tipo de afastamento. E tudo bem, como dizem por aí. Não há nada de errado nisso. Obviamente que para alguns é doloroso, chocante, pode até passar um ar de rejeição como no meu exemplo lá da infância, quando cheguei todo pimpão para brincar com o dito amigo e o guri nem as horas me deu. Ora, se as prioridades dele mudaram, foi justo que agisse com sinceridade. Nem sempre há tempo para sentar numa mesa de bar e, filosofando, explicar que acabou. Nenhuma festa anuncia o seu final, ela simplesmente acaba e fica como lembrança de diversão, esperando que seus frequentadores a tenham aproveitado como manda o figurino.

Não sei se é o melhor caminho, este é um tempo em que querer ser dono da verdade é sinônimo de alertar os gansos. No meu caso tem sido uma saída alentadora, uma vez que permite que eu frequente novos eventos, conheça mais pessoas e viva outras experiências. É claro que alguns poucos ficam, e que bom que ficam! As velhas amizades têm sim um valor inestimável e é justamente por isso que não devem ser muitas, uma vez que demandam dedicação especial. No entanto, a porta precisa estar sempre aberta para ficar quem quer. Nem tudo é rejeição, nem tudo é festa e, nestes tempos dúbios em que vivemos, faz-se extremamente necessário ser leve. E, principalmente, sermos sempre a melhor versão de nós mesmos.

5 comentários:

  1. Não tenho ideia do porquê entrei aqui, Branquelo, mas estou CHOCADA que vc ainda usa o espaço! E que bom que usa!

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    1. Estou voltando aos poucos, Branquela... e que bom te reencontrar por aqui. Dá uma sensação de nostalgia ótima de sentir! Beijão!

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  2. Volto aqui e, apesar de tempos, a escrita continua com todos os traços do autor. Parabéns Antônio.... sou teu fã.

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    1. Cara, toquei no teu nome hoje de manhã! Relembrando nossos tempos de meia cancha... que satisfação receber teu elogio! Forte abraço!

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